sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Final Feliz

© 2009, by Gustavo Pierobom

Ele estava sentado no sofá da sala tendo como companhia uma garrafa quase vazia de uísque e suas recordações. Ainda podia vê-la: com seus olhos azuis e cachinhos dourados arrastando a boneca esfarrapada pelo carpete. “Papai, você vai me levar ao parque hoje?” Mas ele não podia. Sempre tão ocupado com seus malditos livros. Se pudesse prever o futuro nunca teria escrito o primeiro romance, preferia ter ficado o resto da vida lecionando literatura na escola pública, ganhando aquela miséria. Não haveria nenhum luxo e nem carros do ano, mas... Pro inferno! Pelo menos haveria tempo para levar a pequena Amanda ao parque, pelo menos ela ainda estaria ali com ele.

Uma lágrima percorreu seu rosto parando em seus lábios, ele sentiu o gosto amargo da dor e o dissolveu com outra dose de uísque. Adormeceu...

A pequena Amanda sentia-se entediada da maneira mais pura que uma criança de cinco anos poderia sentir-se. Ela não queria mais ficar em seu quarto lotado de tantos brinquedos que já tinham perdido a graça. Queria mesmo brincar com o papai no parque. Olhar os patinhos nadando no chafariz enquanto tomava sorvete, andar de balanço ou descer correndo pelo escorregador. A tia Janice sempre a levava, mas ela não estava ali agora. “Por que ela não vem brincar comigo aos domingos?” Mas, mesmo assim, não era a mesma coisa. Com o papai era mais legal. Ele a carregava nos ombros e fazia aquele barulho de cavalinho. Mas fazia tanto tempo que ele não ia com ela. Agora ele só ficava sentado na frente do computador. Nunca tinha tempo. “Será que ele não gosta mais de mim? Por que a mamãe teve que ir para o céu? Se eu tivesse mãe talvez ela pudesse me levar no parque”

A criança abandonou sua boneca no chão do quarto e correu para a sala. Definitivamente iria convencer o pai a levá-la para passear.

— Papai! Papai! Vamos ao parque? Só um pouquinho?

— O papai tem que trabalhar, querida — respondeu sem ao menos tirar os olhos da tela do computador.

— Mas você nunca me leva — choramingou a criança.

— Não se preocupe, amanhã a tia Janice leva você. Deixe-me trabalhar. Depois vamos pedir uma pizza. Que tal?

Amanda voltou cabisbaixa ao quarto, mas enquanto choramingava teve uma grande idéia. Iria só, ao parque. Iria sim. Ela sabia onde ficava, era só andar um pouco e atravessar aquela rua e pronto. Calçou as sandálias e pegou a velha boneca. “Agora só falta pedir ao papai.” Voltou até a sala.

— Papai, posso ir sozinha ao parque? — perguntou a menina numa voz tão baixa, pois sabia que provavelmente a resposta seria não, que o pai não escutou. — Posso? — repetiu, agora em voz alta.

— Pode, pode. — disse o pai impaciente, sem desviar os olhos do trabalho.

— Oba! — e com esse grito de euforia ela partiu rumo à sua aventura.

Em poucos minutos a garotinha já tinha percorrido boa parte do caminho, pois ia correndo pela rua, como sempre fazia com a babá. Mas espere. Agora teria que atravessar a rua, e sabia que era perigoso. Olhou para o sinal que a tia Janice sempre mostrava. “Qual era mesmo a hora de atravessar? Vermelho ou verde?”

O homem foi despertado pelo toque do telefone. Só podia ser o maldito editor perguntando pelo andamento do livro.

— Alô? Sim... Sim... Sim, está pronto... Não, não vou sair de casa. Mande alguém vir buscar amanhã... Está bem... Até mais.

Após desligar o telefone ele olhou para o maço de folhas sobre a mesa de centro. Na capa lia-se: “Final Feliz”. Seu segundo romance, este que havia sido inspirado pela morte da sua amada esposa no parto, e de como um pai e uma filha poderiam viver felizes com a ausência materna. Ao lado do maço de folhas via-se um recorte de jornal de uns meses atrás: “Criança de cinco anos morre atropelada na Rua Carvalho Souza.” Só que este não era o final que ele planejara.

Pegou seu revólver que estava sobre a mesa da cozinha havia semanas, encostou o cano da arma na testa e puxou o gatilho.

Uma bala no crânio... O único final feliz que aquele homem poderia ter.