domingo, 18 de dezembro de 2011

Cigarro


Um salão de festas vazio.
Foi usado na noite anterior, então há muitos tocos de cigarro e copos descartáveis e alguns objetos pessoais perdidos, esquecidos ou deixados, espalhados pelo piso de parquet.
Um faxineiro limpava tranquilamente aquela bagunça. Ainda sentia um perfume que flutuava invisível no ar e sentia o cheiro de cigarros já fumados e de bebida velha e de salgadinhos, e então sente um forte odor de cigarro que supera todos os outros cheiros.
O faxineiro observou ao redor e descobriu, no lado oposto do salão e deitado num cinzeiro de mármore, um cigarro aceso queimando por conta própria. Não estava lá há um segundo, mas agora estava, com anéis de fumaça azulada elevando-se em ritmo de dança no ar, formando círculos e semicírculos até desaparecerem no nada.
Ele se aproximou e viu lábios de batom vermelho tatuados no filtro branco. A imagem de uma bela mulher, antiga habitante de seus sonhos carnais, lhe assaltou a mente: o vestido vermelho, justo e longo percorrendo suas curvas e as teias de cabelos negros fazendo carícias nos ombros nus ao passo que a face da musa onírica é um espaço vazio habitado somente pelos lábios vermelhos de batom.
O faxineiro fitou o cigarro por um momento, repousado em seu leito de mármore, como excalibur um dia repousou na lápide do rei até que um herdeiro digno fosse reclamá-la.
Um pouco desconfiado, voltou à sua faxina. A vassoura deslizando sobre o parquet, fazendo pequenos montes de lixo por todos os cantos e uma camada de pó transparente, que coloria-se de areia ao contrastar com os focos de raios solares que penetravam pelas janelas.
Começou a limpar os vários cinzeiros espalhados pelas mesas, tendo o cuidado de evitar O cinzeiro, onde aquele cigarro queimava sem consumir-se por completo e sem se apagar, coisa que normalmente acontece em poucos minutos.
As outras mesas já estavam todas limpas, a louça lavada e o piso encerado. Faltava aquela mesa, envolta por fumaça azul que parecia tomar forma de um longo dedo indicador, convidando-o a se aproximar.
Ele postou-se a uma distância que julgou ser segura, de pé, com os antebraços apoiados no cabo da vassoura, e limitou-se a vigiar os lábios vermelhos como se fossem escapar num piscar de olhos. Aquele formato sensual o atraía como um câncer disfarçado no prazer, uma doença implacável convocando o anjo ceifador a roubar a vida de um corpo terminal.
Os raios solares começaram a abandonar as janelas e o salão foi sendo aos poucos mergulhado na penumbra.
Os móveis e as paredes e sua vassoura e seus braços foram sendo tragados pela escuridão, e restava a ponta em brasa do cigarro beijado pela musa sem face.
Não podia mais suportar ver a marca de batom continuar a desaparecer. Desesperou-se! Queria morrer. Não! Implorava pela morte, se esta estava impregnada naqueles lábios em forma de um veneno irresistivelmente, inegavelmente, devastadoramente prazeroso.
Correu em direção à brasa e sem hesitar uma fração de segundo tomou o cigarro entre seus dedos e beijou longamente os lábios vermelhos numa amarga e inesgotável tragada. Devolveu o cigarro a seu catre cinzento, e foi embora, sem conseguir expelir de volta a fumaça azulada que inundaria perpetuamente seus pulmões.

sábado, 10 de setembro de 2011

Pagamento em Chumbo



O lugar era sujo e fedorento como uma toca de ratos. Passei a porta dupla e escorei-me numa viga, logo à entrada, e comecei a enrolar um cigarro. Havia cinco homens no pequeno saloon — três jogavam pôquer numa mesa no centro; um bêbado, mais ao fundo, empenhado em encontrar o fundo de uma garrafa; e o barman, atrás do balcão, tentando inutilmente tirar a gordura acumulada em alguns copos —, todos em completo silêncio.
Acendi o cigarro e fui até o balcão, minhas botas embarradas sujando ainda mais o piso imundo.
— Uísque — disse ao barman.
O homenzinho baixo, de cabelos oleosos, serviu um copo e deixou a garrafa sobre o balcão.
— Maldita chuva, heim? — perguntou.
— É.
— Vem de onde, forasteiro?
— De um lugar onde não fazem perguntas.
Peguei a garrafa e me dirigi a uma mesa do fundo.
Passou-se algum tempo, onde o silêncio só era quebrado pelas apostas ditas em voz baixa no jogo de cartas e pelo barulho da chuva, que o telhado daquele barraco fazia parecer mais forte do que realmente era.
Repentinamente um homem escancarou a porta e entrou com passadas apressadas, decididas. Tinha os olhos injetados de raiva, e uma pesada espingarda de cano duplo que colaborava em seu aspecto sombrio.
— Quem é o dono do garanhão malhado para ali fora?! — berrou.
— O mustang é meu — respondi tranquilamente da minha cadeira.
— O que está acontecendo, Stanton? — interrompeu o barman.
— Esse filho da puta matou meu irmão! — continuou o homem grisalho, ainda gritando. — Seu corpo está atravessado na sela do cavalo.
— A cabeça do seu irmão vale alguns dólares em Nogales, por isso o matei. — expliquei enquanto servia mais uísque. — A sua não vale nada, então o aconselho a me deixar em paz se tem amor à pele.
— Guarde seus conselhos e saque sua arma!
Comecei a beber tranquilamente a dose que eu acabara de servir. Isso deixou Stanton nervoso, sem saber direito como agir. Sua atenção estava em minha mão direita, que segurava o copo, o que foi seu primeiro erro. Enquanto eu bebia, minha outra mão estava a poucos centímetros de um dos meus colts. Homens que carregam coldres duplos não são difíceis de encontrar, mas os que atiram tão bem de esquerda quanto de direita são muito raros. De onde estava, meu adversário não tinha visão da minha arma, o que o deixava em desvantagem, por isso esperei que tomasse a iniciativa. Levei novamente o copo à boca, e ele aproveitou o momento para erguer sua espingarda. Foi seu segundo erro.
Saquei o colt com a mão esquerda e atirei. A bala explodiu no peito do homem antes que pudesse puxar o gatilho. Ele soltou um grunhido surdo e dobrou-se sobre os joelhos, sua espingarda caiu de lado seguida por seu corpo. Estava morto.
Levantei e me dirigi à saída. Joguei um dólar de prata sobre o balcão e disse ao barman:
— Se aparecerem mais parentes querendo vingança, diga que podem me encontrar em Nogales. Meu nome é Vince Logan.

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Cheguei à Nogales dois dias depois. Chovera por quase todo o percurso, o que foi bom, pois se o habitual sol causticante da região tivesse me acompanhado, o cadáver de Morgan Stanton estaria fedendo mais do que já estava.
Entreguei o corpo ao xerife e recebi a recompensa. Já estava de saída do escritório do homem da lei, quando um cowboy chegou a galope.
— Xerife! Xerife!
— Diga homem, o que houve?
— Sou vaqueiro do Duplo D, nosso rancho acabou de ser atacado pela quadrilha de Bud Miller. Além de três homens, a mulher do Senhor Dagget foi morta no tiroteio. 
— Tem certeza que era Bud Miller? — perguntei antes que o xerife tivesse tempo de dizer algo.
— Sim. Eu o vi uma vez em Albuquerque, e o reconheci apesar do lenço que cobria seu rosto. Também escutei um dos seus homens o chamando pelo nome.
Deixei o homem dando mais explicações ao xerife, montei no meu cavalo e parti. O rancho Duplo D ficava a doze quilômetros ao norte da cidade. Seria uma cavalgada rápida apesar de o meu cavalo estar exausto.
Há tempos Bud Miller era procurado pela justiça. Ele cometera todo o tipo de crimes, mas por ter assassinado um juiz em Laredo uns anos atrás sua cabeça valia cinco mil dólares. O cartaz de recompensa com sua cara feia estampada estava esquecido no fundo da minha bolsa de sela em meio a tantos outros, mas agora que eu tinha uma pista quente para seguir não perderia tempo.
Cheguei ao rancho e peguei informações com alguns homens. Os bandidos eram sete, e tinham partido para oeste.
— Você vai sozinho atrás deles? — perguntou Dan Dageet, dono do rancho.
— Vou acompanhado de doze soldadinhos de chumbo calibre 45 — respondi pondo a mão nos meus colts.
— Acrescento mais dois mil na recompensa se me trouxer o bastardo vivo.
— Pode separar o dinheiro — eu disse, e parti.

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A chuva cessara por completo, mas o sol ainda estava escondido atrás das nuvens. As pegadas recentes eram fáceis de seguir, porque o terreno estava úmido. Notei que um dos cavalos estava manco e outro tinha uma ferradura com a ponta quebrada. A sorte estava ao meu favor. Com aquelas particularidades nos rastros, seria praticamente impossível confundi-los com algum outro grupo de número semelhante que eventualmente estivesse na mesma trilha.
Segui devagar, fazendo paradas regulares para dar descanso ao meu mustang, que já começara a reclamar por umas férias.
Ao anoitecer acampei para dormir um pouco. Na escuridão eu correria o risco de perder a pista ou acabar caindo numa emboscada sem perceber. Não fiz fogueira, pois não sabia exatamente a que distância eles estavam e não queria ariscar ser descoberto. Mastiguei um pouco de carne seca sonhando com um bom bife. Tive inveja do cavalo, pois o pasto era abundante e ele estava mais bem servido do que eu.
Ao amanhecer o sol nasceu forte. Meu velho mustang estava bem descansado então eu poderia avançar com rapidez.
Passava um pouco do meio dia quando notei, pelos rastros, que os homens haviam se dividido. Três deles atravessaram um pequeno afluente do rio Colorado e seguiram para o norte; os outros quatro continuaram para oeste. Também continuei seguindo a trilha que ia para oeste, por dois motivos: um deles montava o cavalo da ferradura quebrada, que era o rastro mais fácil de seguir; e sendo o grupo maior, a probabilidade do chefe do bando estar com eles também era maior.
 Já entardecia quando os rastros terminaram num pequeno povoado fantasma. Eu já passara por lugares assim outras vezes: eram cidades construídas de uma hora pra outra, próximas a uma mina de ouro ou prata recém descoberta, mas eram abandonadas assim que o minério se esvaísse por completo. O que restava desta era um amontoado de construções caindo aos pedaços, habitado por cascavéis e escorpiões.
À entrada do povoado uma placa dizendo “Bem Vindo a Benson City” jazia crivada de balas.
Num barraco à esquerda, um velho de cabelos e barba brancos pregava alguns caixões. Bem, se havia um coveiro construindo caixões também existiam futuros inquilinos para habitá-los.
— Um e oitenta e nove, acertei? — ele disse, mostrando um sorriso banguela por baixo da barba cerrada. — Eu nuca erro.
— Seus olhos ainda funcionam bem, velho, mas poupe o trabalho fazendo um caixão pra mim. — Acendi um cigarro. — Quatro homens chegaram recentemente... Onde estão?
— No saloon, logo ali na frente. Vai ter confusão, não é?
Ignorei-o e fui até o lugar onde ele indicou. Deixei o mustang do outro lado da rua, junto com os cavalos deles, e caminhei até o saloon.
O lugar fedia a uísque e a mijo velho. Os quatro homens bebiam numa das poucas mesas inteiras do lugar. Um deles contava sobre uma prostituta perneta que conhecera em Tombstone e os outros gargalhavam. Fingiam não se importar nenhum pouco com a minha presença. Bud Miller não estava entre eles.  
O barman tinha uma cara de rato cortada por uma cicatriz que ia da bochecha ao olho esquerdo.
— Cerveja.
Ele ficou imóvel, como se não tivesse escutado. Joguei uma moeda sobre o balcão e repeti:
— Cerveja.
— Não tem cerveja — cuspiu, indiferente.
Havia um pequeno barril sobre o balcão e um pouco de espuma pingava pela torneirinha que dispersava o líquido.
— E o que é isso aí? — apontei para o barril.
— Você não ouviu ele dizer que não tem cerveja ou por acaso é surdo? — interrompeu um dos homens, o que contava a história.
Voltei-me em sua direção, ficando de costas para o barman.
— Se espera reencontrar sua puta de uma perna só qualquer dia desses, é melhor não se meter — avisei.
Fiquei esperando que ele reagisse puxando a arma ou rebatesse com um xingamento, mas nada aconteceu. Fiquei o encarando e vi que seus olhos brilharam como um gato que está prestes a abocanhar um rato gordo. Para minha sorte, havia os restos de um velho espelho no lado oposto de onde estávamos, e notei pelo reflexo que o barman puxava um rifle de baixo do balcão.
Me virei sacando o colt num gesto que eles não puderam acompanhar e meti uma bala no meio daquela cara de roedor. O sangue espirrou nas garrafas da prateleira atrás dele.
Não esperei para ver o que acontecia. Saltei por cima do balcão ao mesmo tempo em que uma chuva de balas passou zunindo em meus ouvidos. Fiquei agachado enquanto cacos de vidro misturados a uísque barato caíam sobre mim. Espiei pelo canto de baixo do balcão, no lado direito. Três deles se protegeram atrás de uma mesa virada, e um deles vinha em minha direção. Se ele estava cansado de viver, resolvi ajudá-lo: levantei e, batendo com a palma da mão esquerda no cão da arma, efetuei dois disparos, que explodiram no peito do homem, fazendo-o tombar para trás, já sem vida. Mandaram bala sobre mim outra vez, mas eu já havia me escondido. Fizeram uma pequena pausa para recarregar e eu aproveitei. Me ergui com um colt em cada mão e despejei chumbo sobre eles. Um dos homens botou a cabeça pra fora para tentar revidar, e um projétil o atingiu na testa. Faltavam dois.
Os disparos cessaram e eu recarreguei meus instrumentos. Depois pus em prática um velho truque: peguei o rifle que o barman tentara usar contra mim e pendurei meu chapéu no cano, então fui erguendo o chapéu devagar, na extremidade oposta de onde eu estava. Assim que ficou à mostra, meu velho chapéu virou alvo, e eu apareci no outro canto do balcão e atirei, acertando um homem na barriga.
O Silêncio reinou por alguns instantes. Eu já pensava em aprontar outra brincadeira, quando escutei passos apressados. O bandido restante havia dado o fora. Quando ouvi o barulho de um cavalo partindo a galope, saí da minha barricada. Não me preocupei em conferir se ele tinha fugido com meu mustang, pois meu amigo não permite que outra pessoa o monte.
O homem que eu havia acertado na barriga se contorcia no chão, tentado pegar o revólver que caíra próximo a ele. Engatilhei meu colt e avisei:
— Você já tem um pé na cova, mas se quiser entrar de corpo inteiro ponha a mão nessa arma.
— S-seu... seu bastardo — ele grunhiu. A voz saiu acompanhada de um ruído estranho, causado pelo sangue que saía de sua boca e o fazia engasgar.  
— Diga onde posso encontrar Miller que acabo com seu sofrimento.
— Fla... Flagstaff.
Cumpri o prometido puxando o gatilho.

Do pequeno barril sobre o balcão jorrava cerveja por um buraco de bala. Encontrei um caneco inteiro, o enchi e bebi. Tinha gosto de mijo.
No saloon restavam quatro cadáveres e o cheiro de pólvora e sangue no ar. Dei o fora dali.
Na saída do povoado, aquela singular e banguela figura continuava com seu trabalho macabro.
— Prepare quatro caixões, velho. Sabe as medidas, não?
— “Quatro”, você disse? Então não sobrou ninguém. Quem vai pagar meu serviço?
— Isso não é problema meu. Adiós.
Parti rumo à Flagstaff. Já estava mais que na hora de conhecer o famigerado Bud Miller.

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No amanhecer do terceiro dia de viajem, avistei um grupo de cinco apaches vindo em minha direção. Eles montavam em pêlo, mas traziam três cavalos selados pelas rédeas. Saquei meu winchester do estojo de sela e fui avançando devagar. Eles ficaram parados, esperando. À medida que chegava perto, notei que em um dos três cavalos selados, havia um cadáver amarrado: era o homem que havia fugido de mim no povoado fantasma.
Um dos índios cravou sua lança no chão e deu três voltas em torno dela com o cavalo. O sinal queria dizer que pretendia parlamentar. Fiz sinal positivo com a cabeça e ele veio até mim.
Para minha sorte ele era um homem maduro. Se o grupo fosse composto somente por jovens guerreiros eu estaria encrencado. Ele parou muito próximo a mim. Nossos cavalos ficaram cabeça a cabeça. Não tirei os olhos dos dele nem por um segundo, pretendendo demonstrar que não sentia medo.
Ele apontou meu cavalo e depois apontou para o próprio peito. Fiz um sinal negativo com a cabeça: ninguém pega meu mustang. Tirei um cantil com uísque da sela e entreguei a ele. O índio bebeu um gole generoso e pendurou o cantil ao redor do corpo. Me iludi pensando que se contentaria com o uísque. Ele ficou parado, esperando algo mais. Eu tinha mais de quinhentos dólares comigo, mas o dinheiro não tem valor para os índios. Peguei meu winchester pelo cano e entreguei a ele. O apache verificou o rifle e vi seus olhos se iluminarem. Era é uma bela arma, modelo 73, muito melhor que os ferros velhos que eles usavam. Havia um cacto jovem a dez metros de distância, ele atirou e o partiu em dois para delírio dos seus companheiros, que soltaram gritos de guerra para o alto. Ficou admirando o rifle com o semblante sério, acho que pensando o que decidiria. Diabo! Eu perderia o escalpo antes de entregar meu mustang.
Mas não foi preciso. Ele fez sinal positivo com a cabeça e saiu de lado para que eu passasse. Os quatro jovens atrás dele o seguiram soltando seus gritos. Perdi um bom rifle, mas conservei a pele. Não foi um mau negócio.

Alguns dias depois cheguei à Flagstaff. A cidade era grande e os vários saloons da rua principal estavam lotados. Deixei meu mustang numa estrebaria e pedi que fosse bem tratado, depois comecei a ir de saloon em saloon procurando Bud Miller. Tive sorte na quarta tentativa.
O Red River Saloon estava cheio. Era um lugar limpo e agradável, diferente das ratoeiras que eu freqüentara ultimamente. O espaço era grande e animado por várias prostitutas que faziam seu serviço nos quartos do segundo andar. Bud Miller jogava pôquer com mais dois homens.
Bebi duas ou três cervejas observando o homem até me certificar que seus cúmplices não estavam por perto. Fui até ele.
— Tem lugar pra mais um? — perguntei a Miller.
— Depende da cor dos seus dólares.
Peguei um maço de notas do bolso.
— A cor agrada?
— Puxe uma cadeira.

Depois de quatro ou cinco rodadas, percebi que Miller trapaceava. Entrei no jogo e comecei a trapacear também. Com aquela roubalheira não demorou a depenarmos os dois patos que nos acompanhavam. Acabamos ficando no mano a mano.
Eu tinha mais ou menos setecentos dólares na mesa, e Miller quase dois mil. Ele começou a embaralhar as cartas, depois distribuiu cinco para cada um.
Olhei as minhas cartas e não era um bom começo: rei e dez de espadas. As outras tinham naipes e valores diferentes. Ele conferiu seu jogo e soltou duzentos dólares sobre a mesa. Resolvi confiar na sorte e cobri. De qualquer forma aquela seria a última rodada.
— Quantas cartas? — perguntou.
— Três. — E descartei as que não serviam.
Miller não trocou nenhuma carta.
Puxei a primeira carta: dama de espadas. Puxei a segunda carta: valete de espadas. Puxei a terceira e olhei primeiro o naipe: espadas. Fiz um esforço para não sorrir. Diabo! Não era um Ás, era um nove, mas mesmo assim uma ótima mão.
Miller era um bom jogador e permaneceu impassível quando depositou mais trezentos dólares na mesa.
— Aposto tudo. — E empurrei para o meio da mesa o restante da minha grana.
Com o jogo alto, espectadores começaram a aglomerar-se em torno de nós. Miller ficou me observando enquanto coçava o enorme bigode imaginando se eu blefava. Ficou alguns instantes assim até que abriu um sorriso.
— Estou no jogo — ele disse, depositando dinheiro suficiente para pagar a aposta. — É uma pena que você esteja liso, porque com essa mão eu apostaria tudo o que tenho.
— Até sua alma?
— Que?
— Eu poderia fingir que não notei seu jogo sujo e não dizer que você é um trapaceiro filho de uma égua.
— O que voc...
— Cale a boca, eu não terminei! Eu poderia não dizer, mas vou dizer: você é um trapaceiro bastardo que joga com o dinheiro sujo dos seus crimes...
— Seu desg...
— Cale a boca! Vamos fazer o seguinte: não tenho dinheiro comigo, mas tenho um pedaço de papel com essa sua cara feia que vale cinco mil dólares, vivo — joguei o cartaz de recompensa sobre a mesa — ou morto.
Os espectadores abriram espaço e um silêncio mortal reinou no saloon. Miller levantou-se devagar, sua cadeira fazendo um ruído ao ser arrastada.  O imitei e ficamos frente a frente.
Sua mão baixou devagar até a altura da arma — uma schofield 44 — e seus dedos abriam-se e fechavam-se próximos ao cabo. Permaneci imóvel, com a mão congelada à altura do colt. Uma gota de suor projetou-se na testa do facínora e começou a percorrer lentamente sua face até parar pendurada na ponta do bigode. Fiquei atento ao seu olhar, esperando um movimento. Pisquei o olho, o que fez um lampejo de raiva inundar sua expressão. Ele estreitou as pálpebras e sacou. Fui apenas um segundo mais rápido, mas o suficiente para fazer uma bala destroçar a mão que segurava a arma. O revólver voou longe e ele soltou um urro de dor. Devolvi meu colt ao coldre e Miller aproveitou o movimento para me atacar, furioso como um urso pardo ferido. Veio pra cima de mim com as duas mãos abertas, mas agarrou o ar. Dando um passo para o lado, soquei seu estômago com a esquerda e ele se dobrou em dois. Arrematei com um cruzado de direita na lateral da face, sentindo um osso estalar com o impacto da minha mão. Com ele caído aproveitei para chutá-lo no estômago. Gostei do resultado e chutei outra vez, desta vez no rosto. Ele caiu descordado, com os braços abertos e a cara tingida de sangue.
Acendi um cigarro e conferi as cartas de Miller: quatro Ases. Patife até o fim. Peguei da mesa os quinhentos dólares com que tinha começado o jogo.
— Repartam o resto do dinheiro entre vocês dois — eu disse aos patos que havíamos depenado. — Miller estava trapaceando... e eu também.
Carreguei o homem nas costas para fora do saloon, enquanto era observado por olhares atônitos, e o levei até a estrebaria. Amarrei Miller na sela do seu próprio cavalo e me dirigi à saída da cidade puxando o animal pelas rédeas. Esporeei meu mustang pra fora da cidade. Queria estar longe dali quando os comparsas de Bud Miller dessem falta do chefe.

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Depois de mais de uma semana de estrada, cheguei ao rancho Duplo D. Minha viajem de volta poderia ter sido tranqüila, se meu prisioneiro não tivesse chamado minha mãe de todos os tipos de nomes durante a maior parte do percurso.
Dan Dagget estava esperando em frente à sua casa. Sorriu ao me enxergar e fez uma cara de nojo quando viu Miller amarrado ao cavalo. Sem dizer nada, ele entrou em casa e voltou com um laço. Miller ficou pálido ao ver Dagget preparando o nó da forca.
— Faça o que tem que fazer, e depois leve o corpo ao xerife para pegar a recompensa. Estarei esperando no hotel pelo dinheiro que me deve.
— Pode confiar. — ele afirmou.
O aspirante a defunto começou a gritar alguma coisa, mas Dagget o calou com um pontapé. Aquela história não me dizia mais respeito então parti sem demora. Quando olhei para trás, o rancheiro estava passando a corda por cima de um galho de uma velha árvore. O facínora teria o final que merecia.

Peguei a trilha de volta à cidade e já tinha me distanciado do rancho quando, de súbito, escutei uma voz gritar atrás de mim:
— Vince Logan!
Voltei-me na direção da voz e vi um jovem que mal tinha barba na cara. Trazia um velho colt dragão no coldre.
— Sou eu.
— Meu nome é Neal Stanton. Você matou meu pai e meu tio há uns dias atrás. Vim lhe apresentar a conta.
Apeei do cavalo e me aproximei. Ficamos a cinco metros um do outro.
— O inferno está cheio de gente que quis me apresentar contas desse tipo, garoto.
Ele não se intimidou e levou a mão à arma, mas a minha já estava empunhada antes que ele tocasse o cabo da dele.
— Quer tentar de novo? — perguntei, devolvendo meu colt ao coldre.
Ele engoliu em seco. Sua mão baixou novamente, mas foi ainda mais lento que antes. Foi tomado pelo medo quando deu de cara com o cano do meu revólver pela segunda vez.
— Vá pra casa, garoto. Me procure daqui alguns anos.
Ele ficou no mesmo lugar, as pernas tremendo um pouco. Resolvi incentivá-lo: arranquei seu chapéu da cabeça com um balaço. Isso fez ele se decidir.
— Eu vou voltar.
— Estarei esperando.
Fiquei observando até que ele desaparecesse do meu campo de visão atrás de uma colina. Diabo! Algum dia aquele rapaz iria me dar trabalho. Mas agora eu só pensava em alguns dias de descanso regados com muita cerveja.


Inconsciente



Virei bruscamente o volante para a direita, desviando de um caminhão mais lento, quase batendo em outro carro logo à frente. Engrenei a terceira marcha no Omega e furei o sinal vermelho, ignorando as buzinas. Fodam-se! Os bandidos estavam escapando num Honda Civic prata logo após terem assaltado uma agência do Banco do Brasil. O azar deles foi terem topado comigo enquanto eu passava por acaso pela rua.
Cambiei para a quarta e ganhei um pouco de terreno, quando uma espingarda calibre 12’ surgiu pela janela traseira do Honda, disparando e explodindo o pára-brisa do meu carro; alguns cacos cortando o meu rosto. Saquei minha arma — uma pistola Taurus de 15 tiros — do coldre de ombro e respondi ao fogo, espedaçando o vidro traseiro do carro em fuga.
O cano longo da espingarda surgiu novamente e eu me abaixei mantendo o pé no acelerador; depois do estrondo do disparo o encosto de cabeça do meu assento ficou em frangalhos, e eu ergui-me atirando duas vezes, mas desta vez as balas tiveram destino certo — acertando o sujeito da espingarda no peito — botando-o fora de combate.
O Honda virou à esquerda numa rua estreita. Reduzi para segunda marcha e afundei o pé no acelerador, fazendo com que o Omega entrasse na curva jogando a traseira, mas, tão logo a nova rua entrou no meu campo de visão, pude ver uma Pick-Up vindo em minha direção, colidindo de frente pelo lado dianteiro do meu carro, que girou duas vezes e foi parar dentro de uma farmácia. Com o rosto encharcado de sangue, vislumbrei com um meio sorriso um senhor idoso urinar nas calças um pouco antes de eu apagar.

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Quando acordei era tudo branco à minha volta. O paraíso nem sequer passou pelos meus pensamentos, pois se existia essa coisa de céu e inferno, o meu destino seria o andar de baixo e não o de cima. Tive a certeza de que ainda estava vivo quando uma forte dor latejou em minha cabeça, dez vezes mais forte que a ressaca de uma boa bebedeira. Ainda atordoado, escutei um bip contínuo, oriundo de um aparelho ligado ao meu corpo — estava em um hospital.
Sentei-me na cama e notei uma garotinha — de não mais que dez anos, cabeça raspada e grandes olhos castanhos, vestindo uma ridícula camisola branca de bolinhas, igualzinha à minha — sentada na cama ao lado, sorrindo para mim. Senti a barba pinicando em meu pescoço e a julgar por seu tamanho, calculei que estivera desacordado por três dias.
— Por um acaso você não teria um cigarro, teria? — perguntei à menina.
— Não tem graça — ela respondeu, desmanchando o sorriso.
— É, eu sei, desculpe.
Ela abriu o sorriso novamente, mudando de humor ao som de uma frase, da maneira como só as crianças são capazes.
— É uma grande merda, não é? A quimioterapia?
— Você disse um palavrão.
— Ah, porra, descul... oh, merda... olha, é melhor eu ficar calado.
— É muito ruim.
— O quê?
— A quimioterapia. É muito ruim.
— Pois é. Minha esposa também passou por isso. Sinto muito.
— Ela esteve aqui.
— Quem?
— Sua esposa. Ela é bonita.
— Não, não. Você deve ter confundido. Quem deve ter vindo é a Alice, minha parceira na polícia.
— Ela disse que era sua esposa.
— A Alice é assim, gosta de piadas. Talvez seja por isso que me atura há tanto tempo.
— E como você tem certeza de que não era sua esposa?
— Bem, nós não estamos mais juntos — improvisei. Não queria dizer para uma garotinha fazendo quimioterapia que minha esposa morrera de câncer há cinco anos.
— Por quê?
— Por que o quê?
— Por que não estão mais juntos?
— Bem, aconteceu uma coisa ruim e tivemos que nos separar. Olha, me dá licença, preciso ir dar uma mij... ir fazer xixi.

Passei o restante daquele dia submetido a uma série de exames. Pedi alguns comprimidos para dor de cabeça e insisti que me deixassem ir embora, mas em vão. Algo podia estar errado no meu cérebro, dissera o médico, por isso eu teria que ficar alguns dias sob observação.
Estava doido por um cigarro. Tentei de várias formas conseguir algum, mas o melhor que arranjei foram algumas balinhas de hortelã. Uma enfermeira gostosa disse-me que aproveitasse aqueles dias para desintoxicar, e talvez até conseguisse parar de vez. Diabos! Eu não estava nem um pouco a fim de abandonar o meu vício. Até pensei em ameaçar prendê-la se não me trouxesse um bom maço de Mallboro, mas acabei desistindo da idéia.
À noite o terceiro andar do hospital estava mergulhado na escuridão e em um silêncio que só era quebrado pelo burburinho baixo oriundo do primeiro andar, onde funcionava o pronto socorro.  
Para compensar minha insônia, eu assistia um desenho animado idiota no volume mínimo da televisão, enquanto a garotinha com câncer dormia tranqüila na cama ao lado da minha. Me perguntei onde diabos estavam os pais da minha companheira de quarto, pois não os vira uma única vez desde que chegara ali.
Tentei apagar aquilo da mente. Talvez conseguisse saciar minha curiosidade com uma boa conversa pela manhã. Voltei minha atenção para o desenho animado, onde um macaquinho com cara de terrorista acendia uma banana de dinamite, quando ouvi um ruído metálico vindo do corredor. Era algo constante, que se repetia ao intervalo de cinco segundos ou menos, como uma engrenagem mal lubrificada trabalhando.
Aquele “nhec” começou como um sussurro distante e foi tornando-se mais alto à medida que se aproximava. Repetiu-se bem perto quando a luz automática do corredor se acendeu. Notei uma sombra passar, devagar e despreocupada, cobrindo brevemente o pouco de claridade que penetrava pela fresta abaixo da porta. O ruído foi afastando-se preguiçosamente, e a luz do corredor tornou a apagar.
Sentei-me na cama e experimentei um pouco de tontura. Calcei um par de pantufas, deslizei até a porta e a abri devagar. Parei no umbral e a luz ganhou vida outra vez. À minha esquerda não via-se nada além do completo negrume. À direita, ao final de um intervalo escuro que calculei ter quinze metros, o corredor fazia uma curva, onde a última lâmpada no meu campo visual se apagava.
Segui o andarilho noturno a passos lentos. As lâmpadas fluorescentes iam acendendo-se à minha frente e apagando-se às minhas costas. O corredor era largo; as paredes cobertas por azulejos verdes recendendo um cheiro desagradável de desinfetante. Comecei a ouvir o ruído metálico novamente e notei um pouco de claridade opaca vinda da curva para onde me dirigia.
Segui avançando. Um vidro quebrou em algum canto. O desconhecido ruído metálico deu lugar a um farfalhar que me lembrou um gato assaltando uma lata de lixo na calada da noite.
Venci a curva e vi que aquele corredor era mais curto. Do ponto onde eu estava ele parecia desembocar em um lugar amplo logo à frente, onde a luz mantinha-se acesa. Uma placa com uma seta indicando a área da radiologia pendia do teto por finas correntes. Segui por aquele caminho e fui parar num saguão completamente silencioso. Um grande balcão circular com dois monitores desligados tinha destaque no centro. Num canto, próximo a um conjunto de cadeiras de estofado escuro, havia uma máquina que dispensava guloseimas em troca de moedas — tinha o vidro quebrado, alguns biscoitos e salgadinhos espalhados pelo piso verde — que explicava os últimos ruídos que eu ouvira.
Decidi explorar melhor o lugar, com o objetivo de descobrir o pão duro que não queria gastar algumas moedas. Mal iniciei minha busca, escutei passos apressados e risadas vindas do corredor maior, de onde eu viera inicialmente. Corri para lá e pude notar o jogo de luzes acendendo e apagando, acendendo e apagando: alguém corria. Quanto cheguei ao corredor, a última luz se extinguiu num ponto um pouco além do meu quarto e uma porta bateu.
Investi decidido naquela direção. Chegando próximo à porta que batera comecei a escutar barulhos lá dentro, como que estivessem revirando algo. Minha mão fez o gesto automático de buscar a arma, mas não a encontrou onde deveria estar. Era tudo ou nada. Escancarei a porta e... Ninguém! Um pequeno depósito de produtos de limpeza em perfeita ordem.
Sem entender mais nada, um pouco atordoado pela tontura que agora me consumia, voltei ao meu quarto. A televisão continuava ligada no canal de desenhos, mas a garotinha não estava mais lá; a cama ao lado da minha tinha os lençóis sobriamente estendidos, como se nunca usados. Voltei-me imediatamente em direção à porta com o intuito de buscar alguém acordado que me explicasse o que estava acontecendo, mas a tontura me pegou de vez e desabei antes de dar o primeiro passo.

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Despertei não sei quanto tempo depois. Ergui-me do chão devagar, temeroso, mas a dor de cabeça e a tontura haviam cessado. O quarto era o mesmo, mas havia mudado: estava completamente vazio; as paredes escuras, sujas, como no interior de uma casa há muito tempo abandonada. Tentei pôr os sentidos em ordem. O que estava acontecendo comigo? Em resposta veio aquele som metálico, enferrujado, vindo do lado de fora, penetrando através da porta marrom-escura em estado deplorável.
Pus a mão na maçaneta e a porta desfragmentou-se em poeira. O corredor era o mesmo que eu vira da última vez, mas, como o quarto, também estava diferente. O azulejo, outrora verde e limpo, tingia-se aqui e ali com manchas negras. Todas as lâmpadas quebradas, algumas pendendo do teto por um resto de fio, balançando de um lado para outro. Alguns raios de sol invadiam o lugar pelas janelas no alto e deixavam à mostra partículas de poeira dançando no ar. O piso estava coberto com um manto prateado que à primeira vista parecia neve, mas com uma análise melhor notei serem cinzas: eu estava num lugar que fora vitima de um grande incêndio.
O ruído metálico continuava. No chão havia pequenas pegadas entre duas linhas ininterruptas que seguiam corredor adiante como se fossem os trilhos de um trem. Corri naquela direção e o ruído aumentou. Fiz a curva para a direita quando o corredor terminou e, finalmente, descobri de onde provinha aquele som: a menina de cabelos raspados empurrava vagarosamente uma cadeira de rodas em direção ao nada.
— Ei, menina! — gritei. — Pare aí!
Ela parou. Permaneceu imóvel enquanto eu avançava pela suas costas, como que tivesse levado um choque. Após alguns passos dei a volta por ela e deparei-me com algo que eu nunca esperava ver: minha falecida esposa era quem estava sentada na cadeira de rodas. Tinha os olhos avermelhados, cercados por olheiras roxas. Os cabelos escuros com fios grisalhos cobrindo parte da testa pálida decorada por algumas novas rugas. Exatamente a mesma expressão emanando fraqueza que possuía em seus últimos dias de vida.
Caí de joelhos. Tentei dizer qualquer coisa, mas minha voz morreu na garganta.
— Está tudo bem — disse sorridente a garotinha.
— Fa... fale comigo — pedi à minha mulher, ignorando a menina.
— Ela não pode. Disse que ainda não é o momento.
Fiz uma cara de quem não estava entendo nada e a criança entendeu.
— Venha comigo.
A segui. Ela empurrando a cadeira de rodas com minha mulher inerte sobre ela, sem piscar ou mudar de expressão. Descemos ao segundo andar do hospital, onde parecia estar tudo na mais perfeita ordem, com médicos e pacientes para todos os lados. Ninguém parecia nos notar, mas quando alguma pessoa passava por onde nós andávamos, desviava seu trajeto, evitando esbarrar em nós como se nos pressentisse. A cadeira de rodas com uma engrenagem rangendo constantemente.
— Ali, veja — apontou a menina.
Eu vi. Em um quarto particular, ligado a vários aparelhos, meu corpo jazia em estado de coma.
— É hora de voltar — ela disse, e eu desmaiei.

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Despertei sem dor alguma, apenas sentindo a boca seca. Olhei para o lado e vi Silvério — um negro alto com um sorriso largo sublinhando o volumoso bigode —, meu velho amigo de infância.
— Até que enfim acordou, parceiro.
— Por favor, me diga que tem um cigarro.

domingo, 29 de maio de 2011

Fazendo as Contas


Se nós, homens, imaginarmos o casamento como uma empresa de fins lucrativos (onde o prazer e a felicidade são produtos com alto valor de mercado, estando acima, inclusive, da moeda), e pusermos no papel uma equação matemática para calcular o balanço patrimonial, nem sempre o resultado será positivo. A variável é a mulher.

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O Ernesto queria comprar uma mesa de sinuca para pôr na garagem. Antes de falar com a esposa sobre o assunto, foi às lojas pesquisar os preços e, quando voltou para casa, estava armado com uma dezena de orçamentos e o planejamento estratégico em mente.
Dalva estava lavando a louça, então Ernesto deu início a primeira parte do seu plano: a conquista. Chegou por trás da esposa aplicando-lhe um beijo na nuca, fazendo carinhos, e pôs-se prontamente a secar os pratos recém lavados.
— Iiih — desconfiou Dalva. — O que você está querendo?
— Hã? Eu... nada.
— Não me enrola, Neto. A última vez que você decidiu ajudar nos trabalhos domésticos foi quando quis comprar uma TV nova, então vai falando, vai.
— Bem, eu... eu... pensei em comprar uma mesa de sinuca.
— Nem pensar!
— Mas amor, vai ser legal. Posso chamar o Cláudio de vez em quando para jogar, enquanto você fofoca com a mulher dele.
— Vai me chamar de fofoqueira agora, é?
— Amor... sejamos realistas. Além disso, enquanto eu estiver jogando a TV é toda sua.
— Mas Neto, quanto vai custar isso?
— Bem, eu fiz uma pesquisa e encontrei a que eu quero por mil e seiscentos: tampo de mármore, madeira de lei, já vem com um conjunto de tacos e bolas, uma beleza!
— Mil e seiscentos?! Não, Neto, não dá. Estamos economizando para comprar um carro novo, você sabe.
Ele sabia. Mas estava preparado para aquela resposta.
— Calcule comigo — começou ele —, quanto tempo demoramos para economizar mil e seiscentos reais?
— Três meses.
— Exato, três meses. E quanto tempo levará ainda para comprarmos o carro?
— Dois anos.
— Isso, dois anos, então veja só: prefiro esperar mais três meses além dos dois anos para comprar o carro, e comprar minha mesa de sinuca agora, do que deixar para comprar a mesa só depois do carro, o que levaria dois anos e três meses.
— É, a lógica é boa — concordou Dalva. — Então...
— Então?
— Então, seguindo esta lógica, poderemos usar esse dinheiro para comprar uma secadora de roupas, que faz muito mais falta que uma mesa de sinuca.
— Como faz mais falta? Eu não lavo roupas!
— E eu não jogo sinuca!
— Mas você poderia começar a jogar. Te garanto que com um pouco de treino você ganha até do Rui Chapéu.
— E você poderia começar a estender a roupa no varal. Te garanto que com um pouco de treino sua coluna fica tão dolorida quanto a minha.
Para aquilo ele não estava preparado, mas não entregaria os pontos tão facilmente.
— Eu paro de fumar — mentiu. Sabia que quando a mesa estivesse comprada, não daria a primeira tacada sem estar com um cigarro na boca.
— Pára mesmo?
— Claro que paro! Olha só: eu gasto cem reais por mês em cigarros, então se eu parar de fumar e comprar a mesa agora, ele se auto-pagará em dezesseis meses com a economia dos cigarros.
— Ótima idéia! Pare de fumar e compramos a secadora.
— Deus, não! Não vou me sacrificar para comprar uma secadora. Sacrifique-se você. Sei lá... pare de ir ao cabeleireiro.
— Neto, não vamos comprar uma mesa de sinuca e ponto final! Aliás, se você quiser comprar, venda seu carro velho, assim sobra mais espaço na garagem para o novo.  
— Eu vender meu Opalão? Aqui, ó!
— Então nada de mesa de sinuca.
Teria que tomar uma atitude de Homem (sim, com H maiúsculo). Era agora ou nunca.
— Quer saber? Vou comprar a mesa e não se fala mais nisso!
— Tudo bem, se comprar não tem mais sexo.
— Pô, mas assim é covardia.

Ernesto, vencido e cabisbaixo, acomodou-se no sofá, cerveja na mão, e se pôs a pensar no divórcio. O que poderia haver de ruim na vida de solteiro? Poderia beber e fumar à vontade. Poderia chegar em casa à hora que bem entendesse. A roupa era só deixar na lavanderia, sem falar na mesa de sinuca que colocaria na sala, ao invés da garagem. Sexo? Não era tão feio a ponto de não conseguir uma transa de vez em quando, além disso, sempre existiriam prostitutas. Era só pegar o carro e... Ah, o carro! O bom e velho Opala 87, único dono, impecável, sem um arranhão... estava no nome dela. Se queria o divórcio, adeus Opalão.
— Amor, pensando bem, você precisa mesmo de uma secadora... 

domingo, 27 de março de 2011

Duas Cruzes



De onde venho diz-se, quando uma criança deixa o simples gesto de assoprar as chamas das velas de um bolo de aniversário, e passa a apagá-las com a ponta de dois dedos umedecidos, que ela perdeu o brilho de sua infância.
José de Deus, porém, nunca tivera um bolo de aniversário. Nunca tivera a oportunidade de cerrar os olhos, fazer um pedido e assoprar as chamas. Talvez se ele tivesse a chance, as apagaria com a ponta dos dedos de uma vez; mais ansioso para devorar o bolo do que para ganhar um presente. Não tivera tempo de ser criança.
José era um negrinho querido pela maioria dos peões da Estância do Paredão, no interior do Rio Grande do Sul. Todos os dias durante a colheita eles o viam para um lado e para outro com seu balaio de pêssegos e um pedaço de capim entre os dentes sempre à mostra.
A escravidão fora abolida há uns anos, mas Joca, tio de José, resolvera ficar trabalhando na estância por alguns trocados. José poderia ter ido embora com o pai, mas este morrera pelo chicote de Juvêncio, o capataz da fazenda. Às vezes, enquanto colhia os pêssegos, José refletia sobre a morte do pai do qual mal lembrava o rosto. Não saberia dizer ao certo se partiria daquele lugar junto dele para tentar uma nova vida, caso o pai decidisse isso. Mas achava que não. Seria impossível sair dali sem levar Rosário consigo. Aquela guria de pele cor de leite e cabelos tão louros quanto Deus pôde pintar, que de vez em quando fugia da saia da mãe para ir conversar com ele no meio dos pessegueiros.
As chicotadas haviam sido proibidas pelo Senhor Armando, dono da estância e pai de Rosário, mas José perdera a conta de quantas surras de vara levara por conta de ser pego conversando com a guria. Mas não tinha importância, pois ele a amava da forma mais pura que uma criança ama outra — eram verdadeiros amigos.
Mesmo aos dez anos de idade, José de Deus tinha os ombros largos e braços fortes, acostumado ao trabalho árduo praticamente desde que começara a andar. Costumava se exibir para a amiga erguendo-a com uma das mãos para que ela apanhasse alguma fruta mais alta na árvore, e ela gostava disso. Toda a vez que suas peles tão distintas se tocavam, ele lembrava com pesar a conversa que tivera certa vez com o tio:
— Zé, isso coisa boa num há di sê — alertara o tio. — Tu fica longe daquela guria si num quizé prova du chicote do Juvêncio... i du meu chinelo!
— Mas tio, eu gosto dela! — chorara José.
— Num mi interessa! Zé, pur mim tu podia fazê u qui quisesse, mas si tem duas coisa nu mundo que num si misturo, é pele branca cum pele preta. Vê bem tua cor, negrinho. Tu acha qui u Sinhô Armando ia querê um piá qui nem tu pra fia dele?
— Não — respondera José que perdera um pouco do sotaque do tio nas conversas com Rosário.
— Intão? Meu fio, a vida é dura cum nóis, mas temo que sê homi pra guentá. Temu que botá o peito na água e guentá u cunhete, como dizia teu pai. 

O conselho do tio adiantara por um tempo. Tempo em que ele fugia de qualquer maneira dos encontros com a amiga. Mas quando ela finalmente o fisgou, os dois tiveram uma conversa ainda mais importante:
— Por que andas fugindo de mim, Zezinho? Tu ta brabo comigo?
Ele respondeu que não e contou sobre a conversa com o tio.
— Nem tudo o que teu tio falou é verdade. Nossa pele não é totalmente diferente — ela pegou as mãos do amigo com as palmas de tom mais claro calejadas viradas para cima. — Vê? Quase iguais.
— Não são não. Nunca vão ser.
— Mas e o que tem isso? Arroz com feijão não é bom?
— É.
— E um não é preto e o outro branco?
— É.
— Então promete que vai esquecer essa besteira de cor e continuar sendo meu amigo.
— Prometo.
E ele ganhou um beijo no rosto que jamais esqueceria.

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Era 20 de setembro, o dia que José mais gostava, pois todos os peões se reuniam no grande galpão para a comemoração da data em que o General Neto, em 1835, proclamara a República Riograndense. Ele adorava o cheirinho de carne assada misturado ao da fumaça dos fogos de chão, adorava ver o chimarrão e a guampa de cachaça sendo passados de mão e mão, e adorava os chasques e milongas tristes serem dedilhadas nas gaitas e violões.
“... Tchêêê aprochega Gaúcho,
Perto do fogo de chão,
Conte causos da vida campeira
E dos velhos tempos de peão.
Conte causos da vida campeeeira
E dos velhos tempos de peão...”

Dizia umas das canções enquanto José devorava um naco de costela que lhe fora alcançado por um peão.
Certa hora, já madrugada alta, a música cessou um pouco, e os homens iniciaram uma conversa séria, a qual José não deu muita atenção, pois só procurava os olhos de Rosário, do outro lado do galpão, sentada ao lado da mãe. O portador da voz era Bonifácio, o homem mais velho entre eles, mais respeitado que o próprio patrão. Diziam dele que fora o “índio mais queixo-duro” no lombo de um rosilho, e que não perdera o dom, pois era daqueles que Deus forjara e pusera fora a receita. Ninguém ousava interromper sua narrativa. Todos o escutavam como paroquianos a um padre rezando a missa.
    — Têm gente estranha rodeando a estância — começou ele do interior do seu poncho. — Ontem fui buscar um novilho desgarrado lá pra costa do Camacuã, e vi rastro de três cavalos. Um deles tinha uma ferradura quebrada, então se algum de vocês notarem esses rastros no chão tente seguir, pois eu os perdi quando cruzaram o rio. Sei que é gente mal intencionada, porque seguiram um bom trecho por dentro d’água para despistar. Por que mais iam querer andar se entocando sem ter algo a esconder? Não são os peões do velho Rodrigues, porque eu fui falar com ele, e todos os homens dele tão pra banda do Lageado campeando uma tropa.
— Tchê, tu me deixa preocupado — disse Armando de um canto. — O que será que essa gente quer nas minhas terras?
— Não sei patrão, mas coisa boa não é.

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Passaram-se alguns dias desde a churrascada no galpão, e a vida de trabalhador de José de Deus voltara ao normal. Colhia pêssegos como sempre fazia, mas algo diferente lhe chamou atenção: uma linda flor branca, que ele não soube dizer o nome, jazia bela no topo de uma figueira. Ele ficou maravilhado ao ver aquilo, que com certeza não deveria estar ali. Está esperando por mim, pensou. Apressou-se a trepar na árvore e pegou a flor para dar de presente a Rosário. Uma flor para uma flor.
O negrinho correu como nunca com seu balaio de pêssegos em direção à casa grande da estância, onde chamaria pela amiga em sua janela e a presentearia com a flor. Mas quando chegou, notou que algo ruim acontecera, pois os peões, desesperados, saíam em disparada com seus cavalos.
Quando o Senhor Armando o viu, armou-se com o rebenque, o que fez José engolir em seco.
— Cadê a Rosário, negrinho?! — explodiu o homem.
— Ué, não sei não senhor — apressou-se a explicar José.
— Tu não me mentes guri!
— Não senhor. Eu tava lá com os meus pêssegos, e não vi a Rosário hoje. — E de repente um pensamento lhe ocorreu e ele sentiu o coração saltar dentro do peito. — Aconteceu alguma coisa?
— Ela... ela sumiu. — conseguiu dizer o homem, que pareceu, pela primeira vez, ter ficado descontente pela filha não estar junto do negrinho.
José sentiu seus cabelos se ouriçarem. Deixou a flor cair no chão e montou no primeiro cavalo que viu, ignorando os protestos de um peão, e saiu em disparada para o meio do mato.
Passaram-se algumas horas em que os homens, espalhados pelo campo, procuravam a guria desaparecida. O primeiro a vê-la foi José.
Ele escutara um leve gritinho, logo abafado, que reconheceu de imediato. Apeou do cavalo e penetrou no mato cerrado para ver o que os olhos de uma criança nunca deveriam ver: três homens estavam em cima da sua amiga. Um deles segurava as duas mãos contra o solo, outro tampava-lhe a boca, e o terceiro a estuprava. José, do interior de sua inocência, não entendeu bem o que eles estavam fazendo, mas sabia que estavam a maltratando.  Não pensou duas vezes. Agarrou um grosso pedaço de pau do chão e jogou-se sobre os três desconhecidos atacando ferozmente. Com um golpe certeiro ele rachou o crânio do primeiro, que desabou no chão, mas os outros, passada a surpresa, conseguiram dominá-lo. Com dificuldade, mas conseguiram.
Perto dali, Juvêncio, o capataz que matara o pai de José, escutou seus gritos e disparou em sua direção. Mas, ao chegar e espreitar os dois homens que continuavam seu serviço, tremeu com a possibilidade de enfrentá-los só. Ele recuou o cavalo e saiu em disparada para buscar ajuda. No caminho deparou-se com o velho Bonifácio.
— Bonifácio! — berrou. — Tão ali no mato. Dois homens com a guria. O negrinho também e...
— E tu não ajudaste seu merda? — trovejou Bonifácio. — Tu só eras macho contra homens acorrentados no poste! — e deferiu-lhe um golpe com o rebenque na face, que começou a brotar sangue de imediato. — Arranca-te daqui!
Bonifácio esporeou o tordilho mato adentro sem hesitar, e irrompeu com o cavalo no meio dos dois homens. Mesmo com seus oitenta anos, ele não os deu chance alguma: cortou-os aos dois com certeiros golpes de facão... Mas já tinham feito a judiaria.
O negrinho, seu amigo desde sempre, jazia com a garganta cortada num canto, o terror ainda explícito no rosto. Bonifácio foi verificar a menina, mas esta já não respirava. O homem pressionara demasiado forte seu pescoço frágil e a sufocara até a morte. O velho “índio” sacou seu lenço e limpou o sangue que corria pelas pernas de Rosário, depois tornou a vestir-lhe a saia. Poderia poupar os pais pelo menos daquilo. Eles não precisavam saber de tudo o que ocorrera.
Quando os outros peões começaram a chegar, ele contou como tudo acontecera. O patrão, com ódio no coração, deixou uma lágrima percorrer seu rosto.
— Foi culpa do negrinho — ele disse sem pena. — Ela vinha encontrar com ele, tenho certeza.
— Pois meça suas palavras — advertiu-lhe Bonifácio. — José matou sozinho um dos três. Talvez se o teu capataz não tivesse fugido os dois ainda estariam vivos.
Armando então percebeu nunca ter se arrependido tanto por proferir algumas palavras como naquele momento. Jurou para si mesmo que levaria flores todos os dias na sepultura no gurizinho até o dia de sua morte.
— Pegue tuas coisas e suma da minha estância — disse para Juvêncio num tom que fez este estremecer. O covarde não pensou duas vezes e partiu.

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Desde então, a quem chega à Estância do Paredão, no interior do Rio Grande do Sul, é permitido ver duas cruzes lado a lado, no alto de uma coxilha, sempre cobertas de flores. Ali jazem Rosário, a doce menina dos cabelos dourados, e José de Deus, o guri que jamais assoprara as chamas de uma vela de um bolo de aniversário.
  

A Organização do Ópio


Chovia em Sherlock. Faltavam dez minutos para a meia-noite e os fósforos haviam acabado. Recriminei-me por ter aversão a isqueiros, e como eu não queria esfolar as mãos esfregando dois gravetos para produzir fogo, saí para comprar mais fósforos.
Havia um bar próximo a minha casa/escritório, então resolvi dar folga ao meu velho opala e andar um pouco. Com exceção de alguns cães e gatos vira-latas que disputavam seu jantar nas lixeiras, a rua estava deserta. Os finos pingos de chuva desfragmentavam-se no meu chapéu e o meu sobretudo estava sendo pouco útil com todo aquele frio. Apressei o passo e em poucos minutos cheguei ao Alambique Bar.
O lugar estava cheio e quente. Um punhado de adolescentes entretinha-se na única mesa de sinuca, enquanto, nas mesas, alguns outros desocupados procuravam o fundo das garrafas. O balcão estava vazio, e foi para lá que me dirigi.
O seu Joaquim, dono bar, armado de cabelos brancos e bigode avantajado, veio me receber, sorridente.
— O que vai ser hoje, Dash?
— Fósforos e um uísque duplo.
— Gelo?
— Não, à cowboy.
Servida a bebida, tomei um trago e acendi um cigarro.
— Seu Joaquim, já ouviu aquela do português que montou uma fábrica de papel higiênico?
— Oh, raios! Por que não te engasgas com o uísque?
Eu já sabia que o velho responderia daquela maneira, mas fazer o que? Eu não podia resistir à tentação de contar piadas de português para o único português que eu conhecia.
O seu Joaquim escapou da minha piada, indo levar cervejas para os rapazes da mesa de sinuca. Fiquei sozinho com a inconfundível e irritante voz do Galvão Bueno que era cuspida de uma TV 29 polegadas, onde passava a reprise de um programa esportivo. Peguei o controle remoto sobre o balcão e comecei a percorrer os canais, a fim de encontrar algo interessante, quando uma voz embaralhada fez-se ouvir em algum canto.
— Ei, mané, deixa no canal de esporte!
Voltei-me na direção da voz e notei um par de olhos inchados pelo álcool, pregados a uma cara de espantalho. Abri meu sobretudo e deixei à mostra o cabo da Magnun 44 no coldre de ombro, gesto esse que fez com que o bêbado perdesse a vontade de dialogar. Diabos! Um dos motivos para eu nunca ter me casado, era ter que discutir com quem fica com o controle remoto. Não seria àquele borracho que eu daria esta ousadia. Sintonizei no canal de desenhos, onde o Tom, com aquela impagável expressão de maldade, dinamitava a toca do Jerry. Olhei para traz, verificando se o bêbado aprovava, e ele presenteou-me com um sinal positivo com o polegar e um sorriso banguela. Dei a discussão por encerrada.
Bebi o restante do meu uísque e, após despedir-me do português, tomei o rumo de casa. A chuva ficara mais forte e eu refiz o caminho que há pouco percorra com uma sensação de dejavu. Quase chegando, notei que dois cães remexiam em algo na calçada em frente à porta do meu prédio. Da distância em que eu estava, pareceu-me ser um enorme saco de lixo, mas, chegando mais perto notei que, para o meu azar e principalmente para o dele, não era.
O cadáver jazia na calçada sobre uma poça de sangue. O pequeno punhal enterrado no peito deixava claro a causa da morte. O corpo do rapaz ainda estava quente, o que provava que ele fora morto ali mesmo há poucos minutos. Usando o meu lenço, revistei os bolsos e encontrei um maço de cigarros estranho: a embalagem era de papelão impresso com letras chinesas, e a falta dos avisos do ministério da saúde dava a entender que eram fabricados clandestinamente. Usando a câmera do meu celular, tirei algumas fotos do morto, dando destaque ao punhal com cabo em forma de dragão enterrado no peito. Feito isso, disquei o número do Marreta.
— Alô?
— Alo, Marreta?
— Fala, Dash.
— Te acordei?
— Não. To atolado de trabalho até o pescoço. A quadrilha do Gringo já assaltou três bancos nesse mês e a imprensa ta nos meus calcanhares.
— Lamento não ser uma boa hora, mas escuta essa: tem um defunto na porta da minha casa.
— Porra, Dash! O que você aprontou desta vez?
— Eu nada. Saí há pouco para comprar fósforos e quando voltei tinha um maldito defunto na minha porta.
— Quando você diz na sua porta...?
— Na calçada, em frente à porta do meu prédio.
— Como ele é? Pode ser que seja alguém do bando do Gringo, eu soube que eles andaram se pegando entre si.
— Homem branco, vinte a vinte a cinco anos com um punhal chinês cravado no peito.
— Um punhal chinês?
— Porra, Marreta! Se quiser saber mais ligue para o disque assassinatos. Venha ver você mesmo.
— Eu não posso agora, vou mandar dois homens. Não saia daí.
Acendi um cigarro e fiquei aguardando a polícia chegar, enquanto assistia a água da chuva carregar o sangue do rapaz para um bueiro. Cerca de dez minutos depois, um Vectra preto dobrou a esquina e estacionou próximo à cena do crime.
Dois policiais à paisana desceram do carro. Um deles era o Sargento Portela, meu velho conhecido: um negro de quase dois metros de altura, na casa dos cinqüenta anos, usava bigode e era completamente calvo. O outro era um homem jovem que eu não conhecia. Usava tanto gel no cabelo arrepiado que seria capas de quebrar um bloco de concreto com ele.
— Como aconteceu? — perguntou-me Portela, enquanto trocávamos um aperto de mãos.
— Não sei, eu saí há uma hora e quando voltei ele estava aí. Quem é o novato?
O rapaz estava parado ao lado de Portela como um filho obediente, olhando com uma expressão assustada para o cadáver.
— Este é Fábio Tavares. É a sua primeira semana na ativa, e me mandaram cuidar dele por uns tempos. Fábio, este é Malcon Dash, detetive particular licenciado.
Apertamos as mãos e eu perguntei:
— Está tudo bem, garoto? Você parece um pouco pálido.
Ele pigarreou.
— Tudo bem, tudo bem, eu só...
— Sei como é. Primeira vez que vê um cadáver, não é? — e lhe dei três tapinhas nas costas, mais para debochar do que para acalmar — Você se acostuma.
— Bem, vamos ao trabalho. — disse Portela.
— Não vão chamar a perícia? — perguntei.
— Que nada. O chefe quer tudo por baixo dos panos. Se a imprensa souber de mais este crime nessa semana, irão foder com ele.
Eu gostava do Portela, porque ele era das antigas, assim como eu. Eu nunca entrei para a polícia para não ter que seguir certas regras, mas o Portela, apesar de ser policial, não hesitava um instante em quebrá-las.
— Qual vai ser o procedimento? — o novato, recuperando um pouco da sua cor natural.
— Procedimento? — riu Portela — Vamos tirar algumas fotos, jogar o cara na mala e levar para o necrotério.
O sargento foi até o carro buscar uma câmera digital e o novato, munido de luvas plásticas, começou a revistar os bolsos da vítima, tentando não vomitar por cima do corpo e foder com os caras da perícia. Pensei em dizer para ele que não encontraria nada, mas resolvi deixá-lo sofrer mais um pouco. Terminada a revista, enquanto Portela tirava algumas fotos, o novato tirou do bolso um minúsculo gravador e começo a falar:
“Homem caucasiano, cabelos pretos, aproximadamente um metro e oitenta de altura...”
Ele ficou por dois minutos falando besteiras deste tipo. Registrou no gravador desde a hora aproximada da morte até as roupas que o defunto usava. Aquilo já estava me deixando nervoso.
“Possível causa da morte: ferimento causado por arma branca de origem oriental...”
— “Possível causa da morte”? — explodi — Jesus Cristo, o punhal ta cravado até o cabo! Afogamento é que não foi.
O garoto calou-se, não se envergonhado ou amedrontado. Por fim, os dois policiais, como já previra Portela, jogaram o cara na mala do carro e deram o fora.
Entrei em casa e preparei um café que bebi enquanto examinava aqueles estranhos cigarros. Eram compridos, marrons e fedorentos: cigarros de ópio. Eu ainda não tinha certeza do motivo que me levou a não entregá-los para os rapazes da polícia, mas de uma coisa eu sabia: uma investigação no bairro chinês seria interessante.
O dia amanheceu sombrio em Sherlock. A chuva não cessara e o frio continuava intenso. Após um café da manhã com um pão de dois dias e uma manteiga rançosa, subi no meu Opala e parti rumo ao Nova Xangai, o bairro chinês.
Como acabara de amanhecer, o trânsito ainda fluía rapidamente, então apenas quarenta minutos foram suficientes para atravessar a enorme Sherlock e chegar ao meu destino.
Ao cruzar a linha imaginária que marcava a fronteira do bairro chinês com o restante da cidade, tive a sensação de ser transportado para outro mundo. A obscuridade e os traços rudes de uma Sherlock que, na aparência, parecia não ter saído dos anos quarenta, davam lugar a um mundo multicolorido, de arquitetura alegre e estranhamente bonita.
Estacionei meu Opala logo na entrada do bairro e decidi fazer minhas buscas a pé.
Pelo menos o espaço de dez quilômetros quadrados do Nova Xangai era relativamente pequeno para a minha investigação, porém eu não tinha a menor idéia de por onde começar.
Passei a manhã inteira perambulando pelas ruas sem fazer progressos. Minha idéia inicial foi procurar por algum lugar que tivesse um dragão como símbolo, algo relacionado com o punhal, mas logo descartei essa possibilidade, pois quase a metade dos estabelecimentos comerciais tinha o sinistro bicho impresso em suas fachadas. Então resolvi me agarrar a minha outra pista: os cigarros de ópio.
Perdi mais duas horas perguntando aqui e ali onde poderia encontrar cigarros como aqueles, mas todas as respostas eram negativas. Boa parte dos moradores do bairro chinês era de descendentes da raça nascidos no Brasil, mas me iludi ao pensar que seria fácil extrair informações daquelas pessoas. Como seus pais, eram reservados, e tinham receio de abrir o jogo com um homem de olhos redondos como eu.
Já passava da 1h da tarde e o meu estomago me lembrou que já era hora de lhe dar a devida atenção. Fui até uma rua onde havia dezenas de barracas de feirantes vendendo alimentos rápidos ou artesanatos. Circulei um pouco entre elas à procura de algo comestível. Resisti à grande tentação de provar o bife de cachorro e o espetinho de escorpião, e acabei comendo uma coisa estranha que me juraram ser frango frito.
Estomago forrado, retomei minhas buscas. Após mais uma hora infrutífera, vi algo que poderia me ajudar a dar o primeiro passo: um adolescente negro usando calças largas, boné para o lado e uma camiseta que tinha a frase “Sou careta, não uso drogas”, encostado numa parede fumando um baseado. Ao ver aquele distinto cidadão que, como eu, estava completamente fora de lugar naquele bairro, tive um pressentimento de que as coisas começariam a dar certo. Fui até ele.
— Amigo, tem fogo?
Ele foi pego de surpresa. Com certeza não esperava ser perturbado por ninguém estando onde estava. O garoto puxou um isqueiro do bolso e eu puxei do meu o maço de cigarros de ópio e pus um na boca. Com esse meu gesto ele sorriu.
— Esse é dos bons, heim xará?
— Os melhores. Quer um?
— To fora, cara. Isso mata.
Peguei o isqueiro da mão dele, mas não acendi o cigarro.
— Você não tem medo de fumar maconha aqui no meio da rua, na frente de todos? — perguntei.
— Ta brincando, cara? No bairro chinês? Aqui é o único lugar da cidade onde um negro fumando “um” é invisível.
— E a polícia?
— A polícia não vem pra esses lados. Os chinas não incomodam eles e eles não incomodam os chinas. Sacou?
— Saquei.
— Mas e aí, vai ascender o bagulho ou não?
— Hum, não sei. Só tenho mais dois desses. Ganhei de um amigo, mas não sei onde consigo outros.
— É fácil, cara. Siga em frente por essa rua aqui e vire a terceira, não, a quarta rua à direita, ande por mais uns cinqüenta metros e vai encontrar um restaurante, o Dragão Verde.
— Um restaurante?
— Só fachada. É lá que vendem esses cigarros, mas ó: tem que ter grana, cara. Esse bagulho aí não é barato não.
— Obrigado.
Guardei o cigarro de ópio de volta no maço e segui na direção que o garoto havia indicado. Andei por uns minutos quando meu celular tocou. Era o Marreta.
— Você nem sabe a merda em que eu me meti, Dash.
— Que foi?
— Sabe o cara assassinado perto da sua casa?
— O que tem ele?
— É sobrinho do prefeito.
— E daí, você quer que eu chore?
— Não brinque Dash. O prefeito me deu dois dias de prazo para prender o assassino do garoto, se não ele torna o caso público e me ferra de vez. Do jeito que estão as coisas com esse negócio dos assaltos a banco, ele consegue isso só com uma ligação.
— Fique tranqüilo, meu velho. Já estou trabalhando nisso. Mais tarde te ligo.
— Como assim? Você está investigando o crime?
— Arrã.
— Já descobriu algo?
— Me dê uma hora e te respondo.
Desliguei.
Pouco depois, cheguei ao Dragão Verde. Dava para saber o tamanho que viria a conta depois de um jantar, só olhando para os móveis e a decoração do lugar. Tudo de gosto refinadamente caro. Desde as esculturas orientais que enfeitavam as paredes até os uniformes dos garçons.
A recepcionista me recebeu, oferecendo uma mesa. Como resposta, mostrei discretamente a ela o maço de cigarros. Ela pediu que eu a seguisse e eu obedeci. Fui conduzido até uma sala completamente vazia, atrás da recepção. As paredes não tinham pintura e o piso era de cimento. Não havia mesas nem cadeiras, nada. Apenas uma lâmpada fluorescente que deixava aquela espécie de sarcófago de cinco metros quadrados bem iluminada. Aguardei por alguns minutos, e um chinês que tinha a metade do meu tamanho chegou.
— Quantos cigarros vai querer? — ele perguntou com um sotaque carregado.
— Eu não fumo essa merda. Quero falar com o seu patrão.
O baixinho ficou surpreso, mas logo se recuperou.
— Você é policial?
— Eu sou o cara que vai estourar os seus miolos se não fizer o que eu mando. — e saquei o Magnun, apontando para a testa dele.
O china hesitou, mas bastou eu puxar o cão da arma, engatilhando-a para que ele abrisse o bico.
— Na cozinha. — gaguejou. — Ele está no depósito atrás da cozinha.
— Obrigado. — com um coronhasso na cabeça, o botei para dormir. — E boa noite.
Abri a porta da salinha e olhei em volta. Ninguém. O meu nariz me revelou que direção tomar para chegar à cozinha. Segui por um estreito corredor e cheguei até ela. Após uma rápida observação, fiz um registro em minha memória para nunca ir comer naquele lugar. Uma pilha de louça suja lotava a pia, manchas de mofo decoravam as paredes, inúmeros aquários de água esverdeada serviam de moradia para peixes, crustáceos e rãs, que eram preparados na hora. Isso para não falar das incontáveis baratas que corriam por todos os lados. A não ser que elas também fizessem parte da criação, aí eu já não sabia.
Atravessei rapidamente pela enorme cozinha onde nenhum dos cozinheiros pareceu me notar, e cheguei até a única porta que existia além dos banheiros. Só poderia ser o covil do chefão. Entrei.
O local era um enorme galpão, onde havia caixas e mais caixas de madeira que só podiam conter contrabando. Havia quatro chineses sentados em volta de uma grande mesa. No momento em que eu entrei dois deles levantaram-se e vieram em minha direção. O mais velho, obviamente o chefe, ergueu a mão num gesto que pedia calma aos dois capangas. Então ele falou algo em chinês para um dos homens e este traduziu para mim.
— O senhor Wang perguntou se no seu país é costume entrar na casa de uma pessoa sem ser convidado.
— Pergunte se no país dele é costume apunhalar pessoas no meio da rua.
Ele retransmitiu a mensagem no seu idioma. Wang respondeu e o capanga traduziu.
— O senhor Wang disse que antes de falar de negócios são necessárias apresentações. Quem é você?
— Trabalho para o prefeito. — menti. — O garoto que vocês mataram ontem é seu sobrinho.
Traduções feitas e refeitas...
— E por que pensa que nós o matamos?
Não existem muitos assassinos que utilizam punhais com cabo de dragão na cidade. Aposto que se pegarmos as digitais de vocês, alguma delas vai bater com as que encontramos no punhal. Sem falar no ópio que vocês estão vendendo por aí. Por que mataram o rapaz?
— O senhor Wang disse que de onde ele vem, quem não paga suas dívidas é punido com tal sentença.
— E de onde eu venho não é esperto matar um homem de quem se tem dinheiro a receber. O homem morre e a dívida também.
— A dívida morre, mas o exemplo fica. — traduziu o capanga.
— Está bem, que tal pararmos de filosofar e ir direto ao ponto? Quero que todos você se entreguem à justiça sob acusação de homicídio e tráfico de drogas.
— Se não? — desta vez o capanga falou espontaneamente.
— Se não vamos forçá-los a fazerem isso. Se eu não fizer uma ligação daqui a cinco minutos, dezenas de policiais irritados por terem que respirar esse mesmo ar nojento que vocês respiram, virão até aqui para chutar o rabo amarelo de vocês até a delegacia.
Wang não caiu no um blefe e fez sinal para que os capangas viessem para cima de mim. Finalmente o baile iria começar.
Os dois avançaram ferozes na minha direção. Desferi um cruzado no que estava à minha esquerda, mas ele desviou. Recebi um golpe do que estava na direita que acredito ter sido um chute, pois foi tão rápido que não percebi. Resolvi apelidá-lo de Bruce Lee. Cambaleei e o que estava na esquerda emendou uma seqüência de socos que me botou na lona. Vou chamá-lo de Jeckie Chan. Bruce Lee me chutou no estomago enquanto eu estava caído. Senti o golpe, mas agarrei sua perna e o derrubei. Levantei-me já desviando de um chute do Jeckie Chan e o acertei com um gancho no queixo. O impacto fez com ele desse dois passos para trás e deixasse a guarda aberta. Aproveitei o momento e apliquei um cruzado que o fez voar por cima de algumas caixas. Bruce Lee havia se levantado. Investi contra ele com um reto mirando o nariz, mas ele se esquivou e me acertou com cinco ou seis socos que foram tão rápidos que mal vi suas mãos, e arrematou girando o corpo e me acertando com a parte externa do pé na têmpora. Beijei a lona novamente. O Kung Fu daqueles dois estava me matando.
Levantei-me e fiquei outra vez na frente dos dois. Nós três sangrávamos, eu mais que eles. Vieram juntos para cima de mim, desferindo socos e chutes de todos os jeitos possíveis. Desviei-me como pude de alguns e dei o troco em forma de ganchos, retos e cruzados. O combate era selvagem. Eles com a sua técnica milenar bem elaborada, e eu com meus clássicos socos e algumas cabeçadas.
Jeckie Chan tentou um chute alto, buscando minha cabeça. Segurei sua perna com ambas as mãos e, rodopiando em torno de mim mesmo, lancei-o longe. Na queda ele bateu fortemente a cabeça e foi a nocaute. Restava o Bruce Lee. Com um movimento que eu não esperava, ele chutou minha perna, acertando atrás do joelho. O golpe fez com que eu me encolhesse deixasse a guarda baixa. Meu adversário arrematou com uma esquerda no meu rosto que quase me fez perder os sentidos.
Eu me encontrava deitado e ele veio para cima de mim, tentando me chutar. Usei nele o mesmo golpe que ele acabar de aplicar em mim: chutei a parte de trás da sua perna. Ele se dobrou e eu deferi um poderoso soco em sua garganta. Bruce Lee estava de joelhos com as duas mãos na garganta tentando em vão respirar. Aproveitei o momento e apliquei um violento reto em seu nariz. Pude sentir os ossos se quebrando com o impacto da minha mão, e ele caiu no chão. Acredito que ele não levantaria, mas para não restar dúvidas, chutei sua cabeça com toda minha força. Aquilo me fez bem, e então eu chutei de novo. Há muito tempo eu não apanhava tanto em uma briga.
A luta mal havia acabado e o chinês que estava ao lado de Wang, de quem eu já me esquecera, ergueu-se de súbito e lançou algo contra mim. Por puro instinto joguei-me para o lado e um punhal com cabo de dragão passou zunindo por mim para cravar pesadamente em uma viga de madeira às minhas costas. Era ele o assassino do garoto. Eu já estava cansado daqueles golpes de kung fu e, exausto como eu estava, provavelmente perderia outra luta no mano a mano. Saquei o Magnun do coldre e disparei. A bala explodiu no peito do chinês, fazendo com que ele tombasse para trás, já sem vida. Wang tentou um movimento, mas eu estava atento.
— Nem pense nisso. — engatilhei o revólver. — Jogue a arma para cá... Isso, assim. Agora se deite no chão com as mãos na cabeça, bem devagar.
Ele obedeceu e eu puxei uma cadeira para me sentar. Exausto, cuspi o sangue que preenchia minha boca, acendi um cigarro, e telefonei para o Marreta.
— Pode mandar o prefeito ficar quietinho, meu velho. O garoto estava envolvido com traficantes chineses.
— Não brinca.
— Já peguei alguns, venha já para cá.
— Para cá, onde?
— Anote o endereço.
Algum tempo depois, ele chegou com a cavalaria. A polícia invadiu o restaurante e levou várias pessoas presas, inclusive Wang, o chefe da organização. Após agradecimentos e tapinhas nas costas, dei o fora dali, subi no meu velho Opala e fui para casa.
Dois dias depois, o principal jornal da cidade noticiava o assassinato do sobrinho do prefeito e a imediata prisão dos culpados, com destaque para a mais que perfeita ação investigativa da polícia, desmantelando a organização do ópio. A capa do jornal era ilustrada com a foto do meu amigo Marreta, o chefe de polícia Dagoberto Silvério, trocando um aperto de mãos com o prefeito. Uma notícia com bem menos destaque, falava de um novo assalto a banco em Sherlock. Talvez eu tivesse que ajudar o velho Marreta com a quadrilha do Gringo também. Mas por enquanto eu só queria uma boa semana de descanso.