domingo, 25 de abril de 2010

O Sonho

Sonhos são coisas curiosas.

A mente costuma nos pregar peças, às vezes. Enfeitiçar-nos, confundir-nos, brincar conosco e plantar diversas armadilhas pelo caminho, como se fossemos ratos de laboratório num labirinto, tentando encontrar o caminho certo. Morder ou não o queijo eletrocutado no fim da linha é questão de pura interpretação.

Aconteceu com o Arnaldo.

Ele sonhara à noite. No sonho, como em todos os sonhos, tudo fora confuso. As coisas estavam completamente embaralhadas em sua cabeça quando acordou. Entre alguns fragmentos de lembranças do sonho estavam: o golaço do Mengão sobre o Vasco na final do campeonato; as preliminares da transa — porque num sonho nunca se chega a consumar o ato — com aquela gostosa do trabalho que nunca lhe dava bola; os quatro primeiros números da loteria acumulada; e a esposa o traindo com seu velho amigo Pedrão. Mas quem é esse Pedrão? Não se lembrava de ter nenhum amigo chamado Pedrão. Nem velho nem novo. Ele logo concluiu que a traição era outra confusão do seu intelecto e que, como a possível transa com a gostosa, não existia. Era irreal.

Mas mesmo assim ficou com a pulga atrás da orelha, matutando os acontecimentos do sonho. E o pior de tudo era que a esposa iria viajar naquela manhã. Ela ficaria uma semana no interior, visitando seus pais. Não. Havia algo errado. Eram demasiadas coincidências para o seu gosto: um sonho de traição, uma viajem de uma semana e um amante chamado Pedrão. Pedrão! Tinha que investigar melhor aquilo.

Deixou a esposa na cama, ainda dormindo, e foi para a cozinha tomar café e ler seu jornal. Tinha preparado a armadilha. Quando ela apareceu, usando um roupão e um cabelo amassado, ele arriscou:

— O Pedrão acabou de ligar.

— Que Pedrão?

Não, não deu certo. Nenhuma reação suspeita, nenhum brilho no olhar. Nada. Apenas um bocejo e um desinteresse tão bem representado que se fosse fingimento ela mereceria um Oscar.

Bem, ela foi viajar. O Arnaldo tentou de todas as maneiras esquecer aquela bobagem, mas foi impossível. Não resistiu. Correu para o Google e encontrou uma firma de detetives particulares que funcionava na pequena cidade para onde a esposa fora. O anúncio dizia o seguinte:

Detetives S/A — Especializada em descobrir relações extraconjugais. Absoluto sigilo e discrição. Sua desgraça é o nosso segredo.

Perfeito. Discou o número e uma voz atendeu do outro lado da linha.

— Pronto.

— Alô, é da Detetives S/A?

— Sim, Detetive Pedrão falando. Em que posso ajudá-lo?

Desligou o telefone e resolveu confiar na esposa. Afinal, foi só um sonho.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O Intervalo Para o Cigarro

Não há coisa melhor do que fumar um cigarro no intervalo do trabalho. Quero dizer, há, mas no momento estou sem namorada e sem dinheiro para pagar por uma. Sabe como é, tem a prestação do carro.

O grande problema é que o patrão, seu Lindomar, quer nos privar desta dádiva que é uma das poucas vantagens que se têm por trabalhar na firma. Além disso, a única outra vantagem é o futebolzinho na sexta feira dos casados contra os solteiros.

Fui chamado à sala do patrão para discutir o assunto.

Seu Lindomar está achando que a fase difícil que a firma atravessa deve-se ao nosso precioso intervalo para o cigarrinho. Tentei explicar a ele que situação não tão boa da firma deve-se aos IPI, IR, IPTU, IRRF, ICMS e tantos outros Is que insistiam em subir. Ele rebateu dizendo que o único I que subia era a saia da Irislene, sua secretária, que era tamanho I de Insignificante. Com aquilo ele quis dizer que o intervalo para o cigarro havia acabado e ponto final. E o pior: fui o incumbido de transmitir a mensagem aos meus colegas.

Saí da sala do patrão cabisbaixo. Parei diante da porta, onde todos da repartição direcionaram olhares esperançosos em minha direção. Fiz o gesto universal do cigarro, levando o dedo médio e o indicador aos lábios, e em seguida bati com palma aberta de uma das mãos sobre a outra mão fechada, o gesto universal para o “estamos fodidos”. Todos se lamentaram silenciosamente, daquele jeito que se diz: “puta que o pariu” sem abrir a boca. Até mesmo o seu Aroldo, quarenta anos de firma, que havia largado o vício por causa de um câncer no pulmão protestou em forma de uma tossidela violenta.

Passamos aquela semana desolados. Não conseguíamos nos concentrar no trabalho. O pessoal da contabilidade errava o dois mais dois, o do marketing queria trocar a propaganda do intervalo na novela das oito na globo pelo intervalo dos desenhos animados do SBT, e até mesmo a Marcinha, que cuidava do cafezinho, estava trocando o açúcar pelo sal. Não, não podíamos continuar assim, se não só restaria o caos.

Na noite de sexta resolvemos cancelar o futebol e realizar uma reunião. Todos concordaram. Iríamos entrar em greve. Enquanto não nos devolvessem o direito de intervalo para o cigarro, não trabalharíamos. Até mesmo o seu Aroldo, entre uma tossida e outra, prometeu ser o primeiro a empunhar uma placa em prol da nossa causa, coitado.

Na segunda feira o seu Lindomar se assustou quando nos viu invadir seu escritório, munidos de placas e protestos, exigindo nossos direitos. Confesso que senti até pena do homem, pois lia-se em seus olhos que estava a fazer as contas: indenizações, treinamento de novo pessoal. Não, não. Teria de se render. Seu Lindomar fez um gesto para que fizéssemos silêncio, e subiu na sua mesa para iniciar o discurso.

— Está bem, está bem, vocês venceram. Devolvo o direito do intervalo para o cigarro, mas como uma condição: parem de pegar os cigarros do depósito se não a Cigarros Lindomar LTDA vai à falência.

Todos tatearam os bolsos à procura de moedas e correram à tabacaria da esquina.