Um salão de
festas vazio.
Foi usado na
noite anterior, então há muitos tocos de cigarro e copos descartáveis e alguns
objetos pessoais perdidos, esquecidos ou deixados, espalhados pelo piso de
parquet.
Um faxineiro
limpava tranquilamente aquela bagunça. Ainda sentia um perfume que flutuava
invisível no ar e sentia o cheiro de cigarros já fumados e de bebida velha e de
salgadinhos, e então sente um forte odor de cigarro que supera todos os outros
cheiros.
O faxineiro
observou ao redor e descobriu, no lado oposto do salão e deitado num cinzeiro
de mármore, um cigarro aceso queimando por conta própria. Não estava lá há um
segundo, mas agora estava, com anéis de fumaça azulada elevando-se em ritmo de
dança no ar, formando círculos e semicírculos até desaparecerem no nada.
Ele se
aproximou e viu lábios de batom vermelho tatuados no filtro branco. A imagem de
uma bela mulher, antiga habitante de seus sonhos carnais, lhe assaltou a mente:
o vestido vermelho, justo e longo percorrendo suas curvas e as teias de cabelos
negros fazendo carícias nos ombros nus ao passo que a face da musa onírica é um
espaço vazio habitado somente pelos lábios vermelhos de batom.
O faxineiro
fitou o cigarro por um momento, repousado em seu leito de mármore, como
excalibur um dia repousou na lápide do rei até que um herdeiro digno fosse
reclamá-la.
Um pouco
desconfiado, voltou à sua faxina. A vassoura deslizando sobre o parquet,
fazendo pequenos montes de lixo por todos os cantos e uma camada de pó
transparente, que coloria-se de areia ao contrastar com os focos de raios
solares que penetravam pelas janelas.
Começou a
limpar os vários cinzeiros espalhados pelas mesas, tendo o cuidado de evitar O
cinzeiro, onde aquele cigarro queimava sem consumir-se por completo e sem se
apagar, coisa que normalmente acontece em poucos minutos.
As outras
mesas já estavam todas limpas, a louça lavada e o piso encerado. Faltava aquela
mesa, envolta por fumaça azul que parecia tomar forma de um longo dedo
indicador, convidando-o a se aproximar.
Ele postou-se
a uma distância que julgou ser segura, de pé, com os antebraços apoiados no
cabo da vassoura, e limitou-se a vigiar os lábios vermelhos como se fossem
escapar num piscar de olhos. Aquele formato sensual o atraía como um câncer
disfarçado no prazer, uma doença implacável convocando o anjo ceifador a roubar
a vida de um corpo terminal.
Os raios
solares começaram a abandonar as janelas e o salão foi sendo aos poucos
mergulhado na penumbra.
Os móveis e
as paredes e sua vassoura e seus braços foram sendo tragados pela escuridão, e
restava a ponta em brasa do cigarro beijado pela musa sem face.
Não podia
mais suportar ver a marca de batom continuar a desaparecer. Desesperou-se!
Queria morrer. Não! Implorava pela morte, se esta estava impregnada naqueles
lábios em forma de um veneno irresistivelmente, inegavelmente, devastadoramente
prazeroso.
Correu em
direção à brasa e sem hesitar uma fração de segundo tomou o cigarro entre seus
dedos e beijou longamente os lábios vermelhos numa amarga e inesgotável tragada.
Devolveu o cigarro a seu catre cinzento, e foi embora, sem conseguir expelir de
volta a fumaça azulada que inundaria perpetuamente seus pulmões.