terça-feira, 22 de março de 2011

Depois do Fim

Sempre gostei de pensar que a morte não seria o fim, mas sim um novo princípio. Talvez seja por isso que matei — direta ou indiretamente — tantos homens ao longo da minha vida sem sentir muito remorso. Não estou querendo dizer que não o senti, claro que o senti, mas não o bastante, acho. Não sei se fui punido como merecia, mas acho que sim. Provavelmente sim.

Apesar dos meus erros, e não foram poucos, acredito ter levado uma boa vida. Casei-me (não de papel passado) com a melhor mulher que já existiu e a fiz feliz por todos os anos em que passamos juntos. Nunca tivemos filhos, porque não achamos importante tê-los. Freqüentemente um casal resolve gerar uma criança quando o casamento já não está lá essas coisas, então aquela nova vida traz alguma luz para as outras duas já um pouco apagadas. Nós, minha esposa e eu, nunca precisamos disso. Já éramos completos sem mais ninguém. Nunca olhei para outra mulher desde que a conheci, e tenho certeza de que ela também não se interessou por nenhum outro homem. Nunca precisamos ter amigos, também. Nada de jogos de carta aos domingos, jantares um dia na casa de cada um, etc. Foi sempre ela, eu e mais ninguém.

Eu era uma espécie de mercenário a serviço da ditadura militar brasileira. Não era militar, tampouco civil. Alguns me chamavam até de fantasma. Para o meu tipo de trabalho talvez eu precisasse mesmo ser um. Talvez eu fosse. Desde que completei 29 anos, meu nome foi apagado de qualquer documento: como se eu tivesse morrido só que sem atestado de óbito — morri para o sistema.

Eu recebia ordens diretamente do alto comando, e as coisas que me mandavam fazer jamais apareceram em qualquer jornal. A verdade é que a ditadura fui um poço de podridão. As coisas que são conhecidas hoje não são nem um terço do que realmente aconteceu. Poucos jornalistas chegaram perto de descobrir algo realmente podre, como alguns assassinatos em massa incluindo mulheres e crianças, e os que chegaram morreram antes de poder contar.

Quando me recrutaram disseram que toda e qualquer missão designada a mim, seria para contribuir com o progresso do país. A verdade é que eu estava cagando para o progresso. Só o dinheiro me importava e eu ganhei muito. Dinheiro que eu não gastaria nem que vivesse trezentos anos.

Entre tantas coisas que fiz a mando do governo, apenas uma não me saiu da cabeça. Foi uma missão simples se comparada a tantas outras, mas me marcou para sempre.

Recebi ordens para matar um anarquista. Um cara, daquele tipo cheio de sonhos e ideais, que se acha intocável se estiver com a razão ao seu lado. Pobre coitado. Ele era um peixe pequeno, mas pisara em alguns calos que não deveria ter pisado, então me mandaram resolver o assunto. Serviço fácil.

Ele morava num prédio de apartamentos duma ruazinha secundária do centro, daquelas em que o movimento morre num domingo à tarde. Um dos meus homens estava de tocaia desde a madrugada de sábado, enquanto eu esperava num bar próximo, bebendo um café atrás do outro. Foi perto das seis da manhã que o dono do bar, sem saber que seria um pouco cúmplice do crime, perguntou se meu nome era Dagoberto (falso, é claro). Eu disse que sim e ele me passou o telefone. Era o meu homem, me informando que o alvo chegara em casa de porre. O trabalho dele estava concluído, e então começava o meu.

Fui até o prédio da futura vitima e me defrontei com um porteiro gordo, de cabelos oleosos e uma mancha de gordura na camisa. Dava para ver no seu olhar que venderia a própria mãe por alguns trocados. Bem, eu não lhe dei alguns trocados, mas uma quantia maior que do que ele ganharia em um ano de trabalho. Ele pegou sem pestanejar e deu o fora dali com um sorriso de orelha a orelha. O resto seria brincadeira.

O saguão de entrada era apertado. Um papel de parede verde-desbotado cobria as paredes junto com algumas manchas de mofo. À direita havia um conjunto de armários de latão, para correspondências. À esquerda ficava a porta do elevador com a clássica plaquinha de aviso, comum aos elevadores da época: “ATENÇÃO: Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar.” À frente ficavam as escadas, e foi por elas que subi. A cada lance de doze degraus, havia uma curva para a esquerda, depois mais doze, e o andar seguinte. Segui assim até chegar ao sétimo andar. O corredor estava vazio e estaria completamente silencioso não fosse o ruído constante duma lâmpada com defeito que piscava ao fundo. Tomei à direita e fui até a porta número 76.

A maçaneta era daquelas que abriam só de olhar. Aguardei alguns instantes para certificar-me que o interior estava completamente em silêncio. Estava. Abri a porta facilmente com uma chave de fenda, quase sem fazer barulho.

O apartamento estava imerso na penumbra, pois uma cortina escura bloqueava a luz do sol que tentava entrar pela única janela da pequena sala. O lugar era decorado por um papel de parede creme, de mais bom gosto que o verde-desbotado do restante do prédio, mas igualmente com manchas de mofo, o que recendia um leve cheiro de umidade no ar. Uma mesa de centro com algumas revistas e jornais velhos, e uma estante com livros amarelados era o que basicamente havia de móveis ali. À direita ficava uma porta entreaberta que julguei dar acesso ao banheiro devido aos azulejos que eu enxergava de onde estava. Na outra extremidade uma porta fechada, e no centro outra porta entreaberta. Fui em direção a esta, deslizando sorrateiramente.

O casal dormia pesado, mas provavelmente haviam brigado, pois a mulher deitara em uma ponta o mais afastado que podia do marido que há pouco chegara bêbado. Por um momento invejei aquele homem. Pensei que se pudesse escolher como morrer, talvez escolhesse daquele jeito: bêbado e dormindo.

Apaguei aquilo da mente e tratei de concluir meu trabalho. Enterrei minha faca na garganta do homem e a deslizei um pouco para o lado. Retirei-a rapidamente e um guincho de sangue tingiu o lençol enquanto as pernas da vitima davam seus últimos espasmos; e um grunhido surdo morria antes de nascer em sua boca. A mulher teve um fim semelhante, e morreu antes de perceber alguma coisa.

Sorri com satisfação pelo trabalho bem feito, já pensando em que gastaria o dinheiro ganho com ele, mas quando voltei-me em direção à porta do quarto, vi aquilo que me marcaria para sempre: uma garotinha de talvez quatro anos, estagnada a dois metros de mim, com seus longos cabelos escuros caindo pelo pijama branco, o urso de pelúcia pendendo da mão direita, e os olhos azuis muito vivos fitando-me sem expressão. Algum tempo se passou enquanto eu a olhava e ela a mim. Não sei se foram apenas poucos segundos, mas me pareceram horas; horas em que me perdi na profundidade azulada daquele olhar sem expressão que parecia sentir pena de mim, ao invés de medo.

Foi quando recobrei meus sentidos, relembrando o treinamento que me ensinara a abandonar o local do assassinato o mais breve possível, sem deixar testemunhas. SEM DEIXAR TESTEMUNHAS! , gritava uma voz em minha mente a ponto de, de alguma forma, estourar os tímpanos.

Os três passos que dei em direção à menina foram os mais difíceis da minha vida. Meus dedos apertavam com firmeza a faca que já tirara tantas vidas, ainda pingando sangue, prestes a tirar mais uma. Contemplei naqueles olhos inocentes o reflexo da lâmina, já pressentindo como seria a pele macia e límpida se partindo como manteiga, mas... minhas pernas fraquejaram. Um assassino calejado vencido pelo olhar corajoso e misericordioso de uma criança. Pela primeira vez eu falhara. O que consegui fazer foi acariciar levemente o cabelo da menina e sair correndo dali para só parar nas escadas a tempo de vomitar todo o café que bebera naquela noite.

Na rua encontrei um telefone público, de onde avisei a polícia sobre o crime. O último que cometeria. Eu havia me aposentado, mas aquele par de olhos azuis me perseguiria para sempre.

Depois daquilo levei uma vida tranqüila com minha esposa em uma fazenda no interior. Vivemos felizes até que, já bastante idoso, um derrame me deixou mudo e tirou-me praticamente todos os movimentos do corpo. Ainda vivi por vários anos daquela forma: pregado a uma cadeira de rodas, de onde minha amada tirava-me para eu ir para cama ou quando precisava fazer minhas necessidades. Felizmente eu não precisava de palavras para explicar a ela o que eu queria. Um olhar bastava. Ela cantava para mim quase todas as noites, alisando minhas mãos mortas sem que eu pudesse a sentir.

Numa tarde, dirigi-lhe um de meus olhares e ela sorriu, entendendo. Empurrou-me na cadeira de rodas até a entrada do banheiro, e deixou-me ali, enquanto enchia um copo d’água na pia. Tossi alto de repente, e minha amada, ao voltar-se para me olhar, deixou suas frágeis pernas escorregarem no azulejo úmido. A cabeça bateu de encontro à privada e quebrou-se como o copo no chão. Gritei de dor a plenos pulmões, mas não havia voz para deixar a garganta. Tentei desesperadamente me mover, fazer qualquer coisa, mas meu corpo já morrera há muito. Agora a alma também partira.

Demorou alguns dias até que eu morresse. Acho que mais do que deveria demorar, considerando meu estado de saúde precário. Foi o meu castigo por ter feito tantas coisas horríveis: morrer vagarosamente assistindo a água gélida correr da torneira, encharcando minha amada e levando o filete de seu sangue a meus pés.

Sempre gostei de pensar que a morte não seria o fim, mas sim um novo princípio. Mas quando morri não vi nada. Nenhum recomeço; nenhum inferno; nenhum paraíso; nem mesmo aqueles grandes olhos azuis que perseguiram durante tanto tempo: somente escuridão.