domingo, 27 de março de 2011

Duas Cruzes



De onde venho diz-se, quando uma criança deixa o simples gesto de assoprar as chamas das velas de um bolo de aniversário, e passa a apagá-las com a ponta de dois dedos umedecidos, que ela perdeu o brilho de sua infância.
José de Deus, porém, nunca tivera um bolo de aniversário. Nunca tivera a oportunidade de cerrar os olhos, fazer um pedido e assoprar as chamas. Talvez se ele tivesse a chance, as apagaria com a ponta dos dedos de uma vez; mais ansioso para devorar o bolo do que para ganhar um presente. Não tivera tempo de ser criança.
José era um negrinho querido pela maioria dos peões da Estância do Paredão, no interior do Rio Grande do Sul. Todos os dias durante a colheita eles o viam para um lado e para outro com seu balaio de pêssegos e um pedaço de capim entre os dentes sempre à mostra.
A escravidão fora abolida há uns anos, mas Joca, tio de José, resolvera ficar trabalhando na estância por alguns trocados. José poderia ter ido embora com o pai, mas este morrera pelo chicote de Juvêncio, o capataz da fazenda. Às vezes, enquanto colhia os pêssegos, José refletia sobre a morte do pai do qual mal lembrava o rosto. Não saberia dizer ao certo se partiria daquele lugar junto dele para tentar uma nova vida, caso o pai decidisse isso. Mas achava que não. Seria impossível sair dali sem levar Rosário consigo. Aquela guria de pele cor de leite e cabelos tão louros quanto Deus pôde pintar, que de vez em quando fugia da saia da mãe para ir conversar com ele no meio dos pessegueiros.
As chicotadas haviam sido proibidas pelo Senhor Armando, dono da estância e pai de Rosário, mas José perdera a conta de quantas surras de vara levara por conta de ser pego conversando com a guria. Mas não tinha importância, pois ele a amava da forma mais pura que uma criança ama outra — eram verdadeiros amigos.
Mesmo aos dez anos de idade, José de Deus tinha os ombros largos e braços fortes, acostumado ao trabalho árduo praticamente desde que começara a andar. Costumava se exibir para a amiga erguendo-a com uma das mãos para que ela apanhasse alguma fruta mais alta na árvore, e ela gostava disso. Toda a vez que suas peles tão distintas se tocavam, ele lembrava com pesar a conversa que tivera certa vez com o tio:
— Zé, isso coisa boa num há di sê — alertara o tio. — Tu fica longe daquela guria si num quizé prova du chicote do Juvêncio... i du meu chinelo!
— Mas tio, eu gosto dela! — chorara José.
— Num mi interessa! Zé, pur mim tu podia fazê u qui quisesse, mas si tem duas coisa nu mundo que num si misturo, é pele branca cum pele preta. Vê bem tua cor, negrinho. Tu acha qui u Sinhô Armando ia querê um piá qui nem tu pra fia dele?
— Não — respondera José que perdera um pouco do sotaque do tio nas conversas com Rosário.
— Intão? Meu fio, a vida é dura cum nóis, mas temo que sê homi pra guentá. Temu que botá o peito na água e guentá u cunhete, como dizia teu pai. 

O conselho do tio adiantara por um tempo. Tempo em que ele fugia de qualquer maneira dos encontros com a amiga. Mas quando ela finalmente o fisgou, os dois tiveram uma conversa ainda mais importante:
— Por que andas fugindo de mim, Zezinho? Tu ta brabo comigo?
Ele respondeu que não e contou sobre a conversa com o tio.
— Nem tudo o que teu tio falou é verdade. Nossa pele não é totalmente diferente — ela pegou as mãos do amigo com as palmas de tom mais claro calejadas viradas para cima. — Vê? Quase iguais.
— Não são não. Nunca vão ser.
— Mas e o que tem isso? Arroz com feijão não é bom?
— É.
— E um não é preto e o outro branco?
— É.
— Então promete que vai esquecer essa besteira de cor e continuar sendo meu amigo.
— Prometo.
E ele ganhou um beijo no rosto que jamais esqueceria.

——————— // ———————

Era 20 de setembro, o dia que José mais gostava, pois todos os peões se reuniam no grande galpão para a comemoração da data em que o General Neto, em 1835, proclamara a República Riograndense. Ele adorava o cheirinho de carne assada misturado ao da fumaça dos fogos de chão, adorava ver o chimarrão e a guampa de cachaça sendo passados de mão e mão, e adorava os chasques e milongas tristes serem dedilhadas nas gaitas e violões.
“... Tchêêê aprochega Gaúcho,
Perto do fogo de chão,
Conte causos da vida campeira
E dos velhos tempos de peão.
Conte causos da vida campeeeira
E dos velhos tempos de peão...”

Dizia umas das canções enquanto José devorava um naco de costela que lhe fora alcançado por um peão.
Certa hora, já madrugada alta, a música cessou um pouco, e os homens iniciaram uma conversa séria, a qual José não deu muita atenção, pois só procurava os olhos de Rosário, do outro lado do galpão, sentada ao lado da mãe. O portador da voz era Bonifácio, o homem mais velho entre eles, mais respeitado que o próprio patrão. Diziam dele que fora o “índio mais queixo-duro” no lombo de um rosilho, e que não perdera o dom, pois era daqueles que Deus forjara e pusera fora a receita. Ninguém ousava interromper sua narrativa. Todos o escutavam como paroquianos a um padre rezando a missa.
    — Têm gente estranha rodeando a estância — começou ele do interior do seu poncho. — Ontem fui buscar um novilho desgarrado lá pra costa do Camacuã, e vi rastro de três cavalos. Um deles tinha uma ferradura quebrada, então se algum de vocês notarem esses rastros no chão tente seguir, pois eu os perdi quando cruzaram o rio. Sei que é gente mal intencionada, porque seguiram um bom trecho por dentro d’água para despistar. Por que mais iam querer andar se entocando sem ter algo a esconder? Não são os peões do velho Rodrigues, porque eu fui falar com ele, e todos os homens dele tão pra banda do Lageado campeando uma tropa.
— Tchê, tu me deixa preocupado — disse Armando de um canto. — O que será que essa gente quer nas minhas terras?
— Não sei patrão, mas coisa boa não é.

——————— // ————————
  

Passaram-se alguns dias desde a churrascada no galpão, e a vida de trabalhador de José de Deus voltara ao normal. Colhia pêssegos como sempre fazia, mas algo diferente lhe chamou atenção: uma linda flor branca, que ele não soube dizer o nome, jazia bela no topo de uma figueira. Ele ficou maravilhado ao ver aquilo, que com certeza não deveria estar ali. Está esperando por mim, pensou. Apressou-se a trepar na árvore e pegou a flor para dar de presente a Rosário. Uma flor para uma flor.
O negrinho correu como nunca com seu balaio de pêssegos em direção à casa grande da estância, onde chamaria pela amiga em sua janela e a presentearia com a flor. Mas quando chegou, notou que algo ruim acontecera, pois os peões, desesperados, saíam em disparada com seus cavalos.
Quando o Senhor Armando o viu, armou-se com o rebenque, o que fez José engolir em seco.
— Cadê a Rosário, negrinho?! — explodiu o homem.
— Ué, não sei não senhor — apressou-se a explicar José.
— Tu não me mentes guri!
— Não senhor. Eu tava lá com os meus pêssegos, e não vi a Rosário hoje. — E de repente um pensamento lhe ocorreu e ele sentiu o coração saltar dentro do peito. — Aconteceu alguma coisa?
— Ela... ela sumiu. — conseguiu dizer o homem, que pareceu, pela primeira vez, ter ficado descontente pela filha não estar junto do negrinho.
José sentiu seus cabelos se ouriçarem. Deixou a flor cair no chão e montou no primeiro cavalo que viu, ignorando os protestos de um peão, e saiu em disparada para o meio do mato.
Passaram-se algumas horas em que os homens, espalhados pelo campo, procuravam a guria desaparecida. O primeiro a vê-la foi José.
Ele escutara um leve gritinho, logo abafado, que reconheceu de imediato. Apeou do cavalo e penetrou no mato cerrado para ver o que os olhos de uma criança nunca deveriam ver: três homens estavam em cima da sua amiga. Um deles segurava as duas mãos contra o solo, outro tampava-lhe a boca, e o terceiro a estuprava. José, do interior de sua inocência, não entendeu bem o que eles estavam fazendo, mas sabia que estavam a maltratando.  Não pensou duas vezes. Agarrou um grosso pedaço de pau do chão e jogou-se sobre os três desconhecidos atacando ferozmente. Com um golpe certeiro ele rachou o crânio do primeiro, que desabou no chão, mas os outros, passada a surpresa, conseguiram dominá-lo. Com dificuldade, mas conseguiram.
Perto dali, Juvêncio, o capataz que matara o pai de José, escutou seus gritos e disparou em sua direção. Mas, ao chegar e espreitar os dois homens que continuavam seu serviço, tremeu com a possibilidade de enfrentá-los só. Ele recuou o cavalo e saiu em disparada para buscar ajuda. No caminho deparou-se com o velho Bonifácio.
— Bonifácio! — berrou. — Tão ali no mato. Dois homens com a guria. O negrinho também e...
— E tu não ajudaste seu merda? — trovejou Bonifácio. — Tu só eras macho contra homens acorrentados no poste! — e deferiu-lhe um golpe com o rebenque na face, que começou a brotar sangue de imediato. — Arranca-te daqui!
Bonifácio esporeou o tordilho mato adentro sem hesitar, e irrompeu com o cavalo no meio dos dois homens. Mesmo com seus oitenta anos, ele não os deu chance alguma: cortou-os aos dois com certeiros golpes de facão... Mas já tinham feito a judiaria.
O negrinho, seu amigo desde sempre, jazia com a garganta cortada num canto, o terror ainda explícito no rosto. Bonifácio foi verificar a menina, mas esta já não respirava. O homem pressionara demasiado forte seu pescoço frágil e a sufocara até a morte. O velho “índio” sacou seu lenço e limpou o sangue que corria pelas pernas de Rosário, depois tornou a vestir-lhe a saia. Poderia poupar os pais pelo menos daquilo. Eles não precisavam saber de tudo o que ocorrera.
Quando os outros peões começaram a chegar, ele contou como tudo acontecera. O patrão, com ódio no coração, deixou uma lágrima percorrer seu rosto.
— Foi culpa do negrinho — ele disse sem pena. — Ela vinha encontrar com ele, tenho certeza.
— Pois meça suas palavras — advertiu-lhe Bonifácio. — José matou sozinho um dos três. Talvez se o teu capataz não tivesse fugido os dois ainda estariam vivos.
Armando então percebeu nunca ter se arrependido tanto por proferir algumas palavras como naquele momento. Jurou para si mesmo que levaria flores todos os dias na sepultura no gurizinho até o dia de sua morte.
— Pegue tuas coisas e suma da minha estância — disse para Juvêncio num tom que fez este estremecer. O covarde não pensou duas vezes e partiu.

——————— // ————————

Desde então, a quem chega à Estância do Paredão, no interior do Rio Grande do Sul, é permitido ver duas cruzes lado a lado, no alto de uma coxilha, sempre cobertas de flores. Ali jazem Rosário, a doce menina dos cabelos dourados, e José de Deus, o guri que jamais assoprara as chamas de uma vela de um bolo de aniversário.
  

A Organização do Ópio


Chovia em Sherlock. Faltavam dez minutos para a meia-noite e os fósforos haviam acabado. Recriminei-me por ter aversão a isqueiros, e como eu não queria esfolar as mãos esfregando dois gravetos para produzir fogo, saí para comprar mais fósforos.
Havia um bar próximo a minha casa/escritório, então resolvi dar folga ao meu velho opala e andar um pouco. Com exceção de alguns cães e gatos vira-latas que disputavam seu jantar nas lixeiras, a rua estava deserta. Os finos pingos de chuva desfragmentavam-se no meu chapéu e o meu sobretudo estava sendo pouco útil com todo aquele frio. Apressei o passo e em poucos minutos cheguei ao Alambique Bar.
O lugar estava cheio e quente. Um punhado de adolescentes entretinha-se na única mesa de sinuca, enquanto, nas mesas, alguns outros desocupados procuravam o fundo das garrafas. O balcão estava vazio, e foi para lá que me dirigi.
O seu Joaquim, dono bar, armado de cabelos brancos e bigode avantajado, veio me receber, sorridente.
— O que vai ser hoje, Dash?
— Fósforos e um uísque duplo.
— Gelo?
— Não, à cowboy.
Servida a bebida, tomei um trago e acendi um cigarro.
— Seu Joaquim, já ouviu aquela do português que montou uma fábrica de papel higiênico?
— Oh, raios! Por que não te engasgas com o uísque?
Eu já sabia que o velho responderia daquela maneira, mas fazer o que? Eu não podia resistir à tentação de contar piadas de português para o único português que eu conhecia.
O seu Joaquim escapou da minha piada, indo levar cervejas para os rapazes da mesa de sinuca. Fiquei sozinho com a inconfundível e irritante voz do Galvão Bueno que era cuspida de uma TV 29 polegadas, onde passava a reprise de um programa esportivo. Peguei o controle remoto sobre o balcão e comecei a percorrer os canais, a fim de encontrar algo interessante, quando uma voz embaralhada fez-se ouvir em algum canto.
— Ei, mané, deixa no canal de esporte!
Voltei-me na direção da voz e notei um par de olhos inchados pelo álcool, pregados a uma cara de espantalho. Abri meu sobretudo e deixei à mostra o cabo da Magnun 44 no coldre de ombro, gesto esse que fez com que o bêbado perdesse a vontade de dialogar. Diabos! Um dos motivos para eu nunca ter me casado, era ter que discutir com quem fica com o controle remoto. Não seria àquele borracho que eu daria esta ousadia. Sintonizei no canal de desenhos, onde o Tom, com aquela impagável expressão de maldade, dinamitava a toca do Jerry. Olhei para traz, verificando se o bêbado aprovava, e ele presenteou-me com um sinal positivo com o polegar e um sorriso banguela. Dei a discussão por encerrada.
Bebi o restante do meu uísque e, após despedir-me do português, tomei o rumo de casa. A chuva ficara mais forte e eu refiz o caminho que há pouco percorra com uma sensação de dejavu. Quase chegando, notei que dois cães remexiam em algo na calçada em frente à porta do meu prédio. Da distância em que eu estava, pareceu-me ser um enorme saco de lixo, mas, chegando mais perto notei que, para o meu azar e principalmente para o dele, não era.
O cadáver jazia na calçada sobre uma poça de sangue. O pequeno punhal enterrado no peito deixava claro a causa da morte. O corpo do rapaz ainda estava quente, o que provava que ele fora morto ali mesmo há poucos minutos. Usando o meu lenço, revistei os bolsos e encontrei um maço de cigarros estranho: a embalagem era de papelão impresso com letras chinesas, e a falta dos avisos do ministério da saúde dava a entender que eram fabricados clandestinamente. Usando a câmera do meu celular, tirei algumas fotos do morto, dando destaque ao punhal com cabo em forma de dragão enterrado no peito. Feito isso, disquei o número do Marreta.
— Alô?
— Alo, Marreta?
— Fala, Dash.
— Te acordei?
— Não. To atolado de trabalho até o pescoço. A quadrilha do Gringo já assaltou três bancos nesse mês e a imprensa ta nos meus calcanhares.
— Lamento não ser uma boa hora, mas escuta essa: tem um defunto na porta da minha casa.
— Porra, Dash! O que você aprontou desta vez?
— Eu nada. Saí há pouco para comprar fósforos e quando voltei tinha um maldito defunto na minha porta.
— Quando você diz na sua porta...?
— Na calçada, em frente à porta do meu prédio.
— Como ele é? Pode ser que seja alguém do bando do Gringo, eu soube que eles andaram se pegando entre si.
— Homem branco, vinte a vinte a cinco anos com um punhal chinês cravado no peito.
— Um punhal chinês?
— Porra, Marreta! Se quiser saber mais ligue para o disque assassinatos. Venha ver você mesmo.
— Eu não posso agora, vou mandar dois homens. Não saia daí.
Acendi um cigarro e fiquei aguardando a polícia chegar, enquanto assistia a água da chuva carregar o sangue do rapaz para um bueiro. Cerca de dez minutos depois, um Vectra preto dobrou a esquina e estacionou próximo à cena do crime.
Dois policiais à paisana desceram do carro. Um deles era o Sargento Portela, meu velho conhecido: um negro de quase dois metros de altura, na casa dos cinqüenta anos, usava bigode e era completamente calvo. O outro era um homem jovem que eu não conhecia. Usava tanto gel no cabelo arrepiado que seria capas de quebrar um bloco de concreto com ele.
— Como aconteceu? — perguntou-me Portela, enquanto trocávamos um aperto de mãos.
— Não sei, eu saí há uma hora e quando voltei ele estava aí. Quem é o novato?
O rapaz estava parado ao lado de Portela como um filho obediente, olhando com uma expressão assustada para o cadáver.
— Este é Fábio Tavares. É a sua primeira semana na ativa, e me mandaram cuidar dele por uns tempos. Fábio, este é Malcon Dash, detetive particular licenciado.
Apertamos as mãos e eu perguntei:
— Está tudo bem, garoto? Você parece um pouco pálido.
Ele pigarreou.
— Tudo bem, tudo bem, eu só...
— Sei como é. Primeira vez que vê um cadáver, não é? — e lhe dei três tapinhas nas costas, mais para debochar do que para acalmar — Você se acostuma.
— Bem, vamos ao trabalho. — disse Portela.
— Não vão chamar a perícia? — perguntei.
— Que nada. O chefe quer tudo por baixo dos panos. Se a imprensa souber de mais este crime nessa semana, irão foder com ele.
Eu gostava do Portela, porque ele era das antigas, assim como eu. Eu nunca entrei para a polícia para não ter que seguir certas regras, mas o Portela, apesar de ser policial, não hesitava um instante em quebrá-las.
— Qual vai ser o procedimento? — o novato, recuperando um pouco da sua cor natural.
— Procedimento? — riu Portela — Vamos tirar algumas fotos, jogar o cara na mala e levar para o necrotério.
O sargento foi até o carro buscar uma câmera digital e o novato, munido de luvas plásticas, começou a revistar os bolsos da vítima, tentando não vomitar por cima do corpo e foder com os caras da perícia. Pensei em dizer para ele que não encontraria nada, mas resolvi deixá-lo sofrer mais um pouco. Terminada a revista, enquanto Portela tirava algumas fotos, o novato tirou do bolso um minúsculo gravador e começo a falar:
“Homem caucasiano, cabelos pretos, aproximadamente um metro e oitenta de altura...”
Ele ficou por dois minutos falando besteiras deste tipo. Registrou no gravador desde a hora aproximada da morte até as roupas que o defunto usava. Aquilo já estava me deixando nervoso.
“Possível causa da morte: ferimento causado por arma branca de origem oriental...”
— “Possível causa da morte”? — explodi — Jesus Cristo, o punhal ta cravado até o cabo! Afogamento é que não foi.
O garoto calou-se, não se envergonhado ou amedrontado. Por fim, os dois policiais, como já previra Portela, jogaram o cara na mala do carro e deram o fora.
Entrei em casa e preparei um café que bebi enquanto examinava aqueles estranhos cigarros. Eram compridos, marrons e fedorentos: cigarros de ópio. Eu ainda não tinha certeza do motivo que me levou a não entregá-los para os rapazes da polícia, mas de uma coisa eu sabia: uma investigação no bairro chinês seria interessante.
O dia amanheceu sombrio em Sherlock. A chuva não cessara e o frio continuava intenso. Após um café da manhã com um pão de dois dias e uma manteiga rançosa, subi no meu Opala e parti rumo ao Nova Xangai, o bairro chinês.
Como acabara de amanhecer, o trânsito ainda fluía rapidamente, então apenas quarenta minutos foram suficientes para atravessar a enorme Sherlock e chegar ao meu destino.
Ao cruzar a linha imaginária que marcava a fronteira do bairro chinês com o restante da cidade, tive a sensação de ser transportado para outro mundo. A obscuridade e os traços rudes de uma Sherlock que, na aparência, parecia não ter saído dos anos quarenta, davam lugar a um mundo multicolorido, de arquitetura alegre e estranhamente bonita.
Estacionei meu Opala logo na entrada do bairro e decidi fazer minhas buscas a pé.
Pelo menos o espaço de dez quilômetros quadrados do Nova Xangai era relativamente pequeno para a minha investigação, porém eu não tinha a menor idéia de por onde começar.
Passei a manhã inteira perambulando pelas ruas sem fazer progressos. Minha idéia inicial foi procurar por algum lugar que tivesse um dragão como símbolo, algo relacionado com o punhal, mas logo descartei essa possibilidade, pois quase a metade dos estabelecimentos comerciais tinha o sinistro bicho impresso em suas fachadas. Então resolvi me agarrar a minha outra pista: os cigarros de ópio.
Perdi mais duas horas perguntando aqui e ali onde poderia encontrar cigarros como aqueles, mas todas as respostas eram negativas. Boa parte dos moradores do bairro chinês era de descendentes da raça nascidos no Brasil, mas me iludi ao pensar que seria fácil extrair informações daquelas pessoas. Como seus pais, eram reservados, e tinham receio de abrir o jogo com um homem de olhos redondos como eu.
Já passava da 1h da tarde e o meu estomago me lembrou que já era hora de lhe dar a devida atenção. Fui até uma rua onde havia dezenas de barracas de feirantes vendendo alimentos rápidos ou artesanatos. Circulei um pouco entre elas à procura de algo comestível. Resisti à grande tentação de provar o bife de cachorro e o espetinho de escorpião, e acabei comendo uma coisa estranha que me juraram ser frango frito.
Estomago forrado, retomei minhas buscas. Após mais uma hora infrutífera, vi algo que poderia me ajudar a dar o primeiro passo: um adolescente negro usando calças largas, boné para o lado e uma camiseta que tinha a frase “Sou careta, não uso drogas”, encostado numa parede fumando um baseado. Ao ver aquele distinto cidadão que, como eu, estava completamente fora de lugar naquele bairro, tive um pressentimento de que as coisas começariam a dar certo. Fui até ele.
— Amigo, tem fogo?
Ele foi pego de surpresa. Com certeza não esperava ser perturbado por ninguém estando onde estava. O garoto puxou um isqueiro do bolso e eu puxei do meu o maço de cigarros de ópio e pus um na boca. Com esse meu gesto ele sorriu.
— Esse é dos bons, heim xará?
— Os melhores. Quer um?
— To fora, cara. Isso mata.
Peguei o isqueiro da mão dele, mas não acendi o cigarro.
— Você não tem medo de fumar maconha aqui no meio da rua, na frente de todos? — perguntei.
— Ta brincando, cara? No bairro chinês? Aqui é o único lugar da cidade onde um negro fumando “um” é invisível.
— E a polícia?
— A polícia não vem pra esses lados. Os chinas não incomodam eles e eles não incomodam os chinas. Sacou?
— Saquei.
— Mas e aí, vai ascender o bagulho ou não?
— Hum, não sei. Só tenho mais dois desses. Ganhei de um amigo, mas não sei onde consigo outros.
— É fácil, cara. Siga em frente por essa rua aqui e vire a terceira, não, a quarta rua à direita, ande por mais uns cinqüenta metros e vai encontrar um restaurante, o Dragão Verde.
— Um restaurante?
— Só fachada. É lá que vendem esses cigarros, mas ó: tem que ter grana, cara. Esse bagulho aí não é barato não.
— Obrigado.
Guardei o cigarro de ópio de volta no maço e segui na direção que o garoto havia indicado. Andei por uns minutos quando meu celular tocou. Era o Marreta.
— Você nem sabe a merda em que eu me meti, Dash.
— Que foi?
— Sabe o cara assassinado perto da sua casa?
— O que tem ele?
— É sobrinho do prefeito.
— E daí, você quer que eu chore?
— Não brinque Dash. O prefeito me deu dois dias de prazo para prender o assassino do garoto, se não ele torna o caso público e me ferra de vez. Do jeito que estão as coisas com esse negócio dos assaltos a banco, ele consegue isso só com uma ligação.
— Fique tranqüilo, meu velho. Já estou trabalhando nisso. Mais tarde te ligo.
— Como assim? Você está investigando o crime?
— Arrã.
— Já descobriu algo?
— Me dê uma hora e te respondo.
Desliguei.
Pouco depois, cheguei ao Dragão Verde. Dava para saber o tamanho que viria a conta depois de um jantar, só olhando para os móveis e a decoração do lugar. Tudo de gosto refinadamente caro. Desde as esculturas orientais que enfeitavam as paredes até os uniformes dos garçons.
A recepcionista me recebeu, oferecendo uma mesa. Como resposta, mostrei discretamente a ela o maço de cigarros. Ela pediu que eu a seguisse e eu obedeci. Fui conduzido até uma sala completamente vazia, atrás da recepção. As paredes não tinham pintura e o piso era de cimento. Não havia mesas nem cadeiras, nada. Apenas uma lâmpada fluorescente que deixava aquela espécie de sarcófago de cinco metros quadrados bem iluminada. Aguardei por alguns minutos, e um chinês que tinha a metade do meu tamanho chegou.
— Quantos cigarros vai querer? — ele perguntou com um sotaque carregado.
— Eu não fumo essa merda. Quero falar com o seu patrão.
O baixinho ficou surpreso, mas logo se recuperou.
— Você é policial?
— Eu sou o cara que vai estourar os seus miolos se não fizer o que eu mando. — e saquei o Magnun, apontando para a testa dele.
O china hesitou, mas bastou eu puxar o cão da arma, engatilhando-a para que ele abrisse o bico.
— Na cozinha. — gaguejou. — Ele está no depósito atrás da cozinha.
— Obrigado. — com um coronhasso na cabeça, o botei para dormir. — E boa noite.
Abri a porta da salinha e olhei em volta. Ninguém. O meu nariz me revelou que direção tomar para chegar à cozinha. Segui por um estreito corredor e cheguei até ela. Após uma rápida observação, fiz um registro em minha memória para nunca ir comer naquele lugar. Uma pilha de louça suja lotava a pia, manchas de mofo decoravam as paredes, inúmeros aquários de água esverdeada serviam de moradia para peixes, crustáceos e rãs, que eram preparados na hora. Isso para não falar das incontáveis baratas que corriam por todos os lados. A não ser que elas também fizessem parte da criação, aí eu já não sabia.
Atravessei rapidamente pela enorme cozinha onde nenhum dos cozinheiros pareceu me notar, e cheguei até a única porta que existia além dos banheiros. Só poderia ser o covil do chefão. Entrei.
O local era um enorme galpão, onde havia caixas e mais caixas de madeira que só podiam conter contrabando. Havia quatro chineses sentados em volta de uma grande mesa. No momento em que eu entrei dois deles levantaram-se e vieram em minha direção. O mais velho, obviamente o chefe, ergueu a mão num gesto que pedia calma aos dois capangas. Então ele falou algo em chinês para um dos homens e este traduziu para mim.
— O senhor Wang perguntou se no seu país é costume entrar na casa de uma pessoa sem ser convidado.
— Pergunte se no país dele é costume apunhalar pessoas no meio da rua.
Ele retransmitiu a mensagem no seu idioma. Wang respondeu e o capanga traduziu.
— O senhor Wang disse que antes de falar de negócios são necessárias apresentações. Quem é você?
— Trabalho para o prefeito. — menti. — O garoto que vocês mataram ontem é seu sobrinho.
Traduções feitas e refeitas...
— E por que pensa que nós o matamos?
Não existem muitos assassinos que utilizam punhais com cabo de dragão na cidade. Aposto que se pegarmos as digitais de vocês, alguma delas vai bater com as que encontramos no punhal. Sem falar no ópio que vocês estão vendendo por aí. Por que mataram o rapaz?
— O senhor Wang disse que de onde ele vem, quem não paga suas dívidas é punido com tal sentença.
— E de onde eu venho não é esperto matar um homem de quem se tem dinheiro a receber. O homem morre e a dívida também.
— A dívida morre, mas o exemplo fica. — traduziu o capanga.
— Está bem, que tal pararmos de filosofar e ir direto ao ponto? Quero que todos você se entreguem à justiça sob acusação de homicídio e tráfico de drogas.
— Se não? — desta vez o capanga falou espontaneamente.
— Se não vamos forçá-los a fazerem isso. Se eu não fizer uma ligação daqui a cinco minutos, dezenas de policiais irritados por terem que respirar esse mesmo ar nojento que vocês respiram, virão até aqui para chutar o rabo amarelo de vocês até a delegacia.
Wang não caiu no um blefe e fez sinal para que os capangas viessem para cima de mim. Finalmente o baile iria começar.
Os dois avançaram ferozes na minha direção. Desferi um cruzado no que estava à minha esquerda, mas ele desviou. Recebi um golpe do que estava na direita que acredito ter sido um chute, pois foi tão rápido que não percebi. Resolvi apelidá-lo de Bruce Lee. Cambaleei e o que estava na esquerda emendou uma seqüência de socos que me botou na lona. Vou chamá-lo de Jeckie Chan. Bruce Lee me chutou no estomago enquanto eu estava caído. Senti o golpe, mas agarrei sua perna e o derrubei. Levantei-me já desviando de um chute do Jeckie Chan e o acertei com um gancho no queixo. O impacto fez com ele desse dois passos para trás e deixasse a guarda aberta. Aproveitei o momento e apliquei um cruzado que o fez voar por cima de algumas caixas. Bruce Lee havia se levantado. Investi contra ele com um reto mirando o nariz, mas ele se esquivou e me acertou com cinco ou seis socos que foram tão rápidos que mal vi suas mãos, e arrematou girando o corpo e me acertando com a parte externa do pé na têmpora. Beijei a lona novamente. O Kung Fu daqueles dois estava me matando.
Levantei-me e fiquei outra vez na frente dos dois. Nós três sangrávamos, eu mais que eles. Vieram juntos para cima de mim, desferindo socos e chutes de todos os jeitos possíveis. Desviei-me como pude de alguns e dei o troco em forma de ganchos, retos e cruzados. O combate era selvagem. Eles com a sua técnica milenar bem elaborada, e eu com meus clássicos socos e algumas cabeçadas.
Jeckie Chan tentou um chute alto, buscando minha cabeça. Segurei sua perna com ambas as mãos e, rodopiando em torno de mim mesmo, lancei-o longe. Na queda ele bateu fortemente a cabeça e foi a nocaute. Restava o Bruce Lee. Com um movimento que eu não esperava, ele chutou minha perna, acertando atrás do joelho. O golpe fez com que eu me encolhesse deixasse a guarda baixa. Meu adversário arrematou com uma esquerda no meu rosto que quase me fez perder os sentidos.
Eu me encontrava deitado e ele veio para cima de mim, tentando me chutar. Usei nele o mesmo golpe que ele acabar de aplicar em mim: chutei a parte de trás da sua perna. Ele se dobrou e eu deferi um poderoso soco em sua garganta. Bruce Lee estava de joelhos com as duas mãos na garganta tentando em vão respirar. Aproveitei o momento e apliquei um violento reto em seu nariz. Pude sentir os ossos se quebrando com o impacto da minha mão, e ele caiu no chão. Acredito que ele não levantaria, mas para não restar dúvidas, chutei sua cabeça com toda minha força. Aquilo me fez bem, e então eu chutei de novo. Há muito tempo eu não apanhava tanto em uma briga.
A luta mal havia acabado e o chinês que estava ao lado de Wang, de quem eu já me esquecera, ergueu-se de súbito e lançou algo contra mim. Por puro instinto joguei-me para o lado e um punhal com cabo de dragão passou zunindo por mim para cravar pesadamente em uma viga de madeira às minhas costas. Era ele o assassino do garoto. Eu já estava cansado daqueles golpes de kung fu e, exausto como eu estava, provavelmente perderia outra luta no mano a mano. Saquei o Magnun do coldre e disparei. A bala explodiu no peito do chinês, fazendo com que ele tombasse para trás, já sem vida. Wang tentou um movimento, mas eu estava atento.
— Nem pense nisso. — engatilhei o revólver. — Jogue a arma para cá... Isso, assim. Agora se deite no chão com as mãos na cabeça, bem devagar.
Ele obedeceu e eu puxei uma cadeira para me sentar. Exausto, cuspi o sangue que preenchia minha boca, acendi um cigarro, e telefonei para o Marreta.
— Pode mandar o prefeito ficar quietinho, meu velho. O garoto estava envolvido com traficantes chineses.
— Não brinca.
— Já peguei alguns, venha já para cá.
— Para cá, onde?
— Anote o endereço.
Algum tempo depois, ele chegou com a cavalaria. A polícia invadiu o restaurante e levou várias pessoas presas, inclusive Wang, o chefe da organização. Após agradecimentos e tapinhas nas costas, dei o fora dali, subi no meu velho Opala e fui para casa.
Dois dias depois, o principal jornal da cidade noticiava o assassinato do sobrinho do prefeito e a imediata prisão dos culpados, com destaque para a mais que perfeita ação investigativa da polícia, desmantelando a organização do ópio. A capa do jornal era ilustrada com a foto do meu amigo Marreta, o chefe de polícia Dagoberto Silvério, trocando um aperto de mãos com o prefeito. Uma notícia com bem menos destaque, falava de um novo assalto a banco em Sherlock. Talvez eu tivesse que ajudar o velho Marreta com a quadrilha do Gringo também. Mas por enquanto eu só queria uma boa semana de descanso.

Joguem aos Peixes


Meu nome é Malcon Dash.
Essa coisa de querer ser detetive começou quando eu ainda estava na escola, na quarta série, quando a Marcinha me ofereceu um cachorro quente e uma coca-cola em troca de eu descobrir quem estava assaltando sua lancheira às escondidas. Tive 95% de sucesso no meu primeiro caso, pois, oferecendo um gole da coca para um e uma mordida do cachorro quente para outro, descobri que o ladrão de lanches era o Marreta, um enorme garoto da quinta série. Os 5% que faltaram para o meu total sucesso foram devidos à surra que levei do Marreta.
Foi por causa do Marreta que comecei a praticar boxe, pois um bom detetive precisava saber se defender. Demorei uns três anos para conseguir dar minha primeira surra no Marreta. Na quinta série consegui acertar um cruzado no olho dele, mas a coça que levei fora duas vezes maior que as anteriores. Enfim, foi lá pela sétima ou oitava série que consegui vencê-lo pela primeira vez. Neste meio tempo minha fama de detetive foi crescendo. Meus serviços iam desde encontrar ladrões de mochila a vigiar os namorados das meninas do ensino médio.
Tenho um revólver Magnun calibre 44, como o dos filmes do Dirt Harry, pois um bom detetive precisa de uma arma que imponha respeito — coisa que eu não conseguiria com um 22 —. Acreditem. Por mais valente que seja o bandido, ele treme em frente ao cano de um 44. É como dizia meu velho pai, que Deus o tenha: “É atrás de uma mulher e na frente de uma arma que se conhece o homem.”
Hoje tenho quarenta anos. Enquanto conto como tornei-me o melhor detetive licenciado de Sherlock, estou sentado atrás da minha escrivaninha, com os pés jogados para o alto, sobre ela, esperando algum cliente. O cinzeiro transborda de baganas de cigarro, meu único vício. Além do café. E do uísque. Sobre a escrivaninha há algumas pilhas de papéis e recortes de jornais de velhos casos. Hoje são verdadeiros, mas antigamente, no começo, eu espalhava qualquer papel aleatoriamente para dar ao escritório um ar de interessante. Por este mesmo motivo que uso as roupas que uso: para ser interessante. No mesmo estilo dos detetives dos anos quarenta, uso um paletó escuro com a gravata frouxa no colarinho, e um chapéu de feltro. Não que estas roupas sejam tão incomuns em Sherlock, mas eu não poderia ser um detetive de jeans e camiseta. Onde eu esconderia o 44 que carrego no coldre de ombro? Também uso alguns disfarces de vez em quando. Certa vez tive que me disfarçar de cowboy de rodeios para pegar um ladrão que atuava no interior, mas esta história fica para outra vez. Está chegando cliente.
Era uma garota loira, bonita, por volta dos vinte anos. Dava para saber a idade por causa do par de seios dez para as duas, e não quinze para as três, como os da minha última namorada. Fiz sinal para que se sentasse na cadeira à minha frente, ela obedeceu e depois sacou um lenço da bolsa para enxugar uma lágrima. Senti-me um otário por reparar nos seus seios num momento daqueles, mas o que eu podia fazer?
— Em que posso ser útil?
— Meu pai está sumido há cinco dias. Saiu para o trabalho na segunda, e não atende o celular e nem manda notícias desde então.
— Por que não foi à polícia? Eles procuram de graça.
— Nós gostaríamos de um pouco de discrição, sabe?
— Nós?
— Minha mãe e eu.
— Tem uma foto do seu pai? Preciso saber tudo: nome, profissão, idade, seus hábitos...
— Acho que sei onde ele está, senhor.
— Dash! Me chame de Dash.
Uma das coisas que me deixavam puto era uma garota jovem e bonita me chamar de senhor. Diabos!
— Se sabe onde ele está, por que veio a mim?
— Bem, eu não sei exatamente. Eu já o segui umas duas vezes até um prédio, mas não sei o número do apartamento que ele usava.
— Usava para quê?
Ela inclinou-se sobre a mesa e trouxe seu rosto próximo ao meu. Tentei em vão não olhar seu decote. Então ela sussurrou, parecendo ter medo de ser ouvida:
— Acredito que meu pai tenha uma amante.
Que novidade.
— E sua mãe, pensa o mesmo?
— Minha mãe sofre de Alzheimer, senhor. Às vezes não reconhece nem a mim.
O “senhor” de novo. Não fosse pela situação da garota e pelo par de seios eu a chutaria para fora.
— Entendo. Preciso do endereço do prédio, a foto do seu pai e os dados que te pedi.
Ela me deu uma foto do 3x4 do pai e foi me dizendo tudo o que sabia sobre ele. Chamava-se José de Almeida, tinha 45 anos, e era dono de uma imobiliária. À medida que ela falava, eu tomava nota no meu caderninho. Ao fim do relato levantei-me da cadeira. O gesto universal para dizer que a conversa havia acabado. A garota (que se chamava Patrícia.) também levantou-se.
— Cobro quinhentos paus a diária e mais despesas, como gasolina e algum possível suborno, por exemplo. Está bem assim?
— Está. Dinheiro não é problema.
— Ok. Não se preocupe. Encontrarei seu pai, e em breve mandarei notícias.
A garota deixou o escritório. Eram 11h30min e como parecia ser um simples caso de traição seguido de deserção do casamento, fácil de resolver como tantos outros, resolvi ir almoçar no Boca Nervosa. A única coisa em Sherlock melhor que o filé com fritas do Boca Nervosa, era a Anabela, a garçonete do lugar.
Subi no meu opala e me dirigi ao restaurante. Dez minutos depois eu chegava ao Boca Nervosa, que ficava numa ruazinha pouco movimentada do centro. Sentei-me ao balcão, como de costume.
— O mesmo de sempre, Dash? — perguntou Anabela, linda como sempre naquele vestidinho curto e justo.
— O mesmo, boneca.
Pouco depois chegava minha refeição acompanhada de uma caneca de cerveja. A grande vantagem de ser o próprio patrão é poder beber em serviço.
— Então, Bela, quando vamos sair para tomar aquela bebida?
— Eu não bebo Dash, você sabe.
— E um cineminha, então? Está passando um novo do Chuck Norris.
— Outra hora, Dash.
— Uma comédia romântica, quem sabe?
— O problema não é o filme, Dash.
Diabos! Em Sherlock apenas uma garota em mil não gosta de caras durões que carregam uma arma. Para meu azar, Anabela era uma dessas.
Como minhas cantadas não estavam rendendo, resolvi ir de uma vez até o tal prédio onde a filha presumia estar o pai desaparecido. O lugar ficava na zona norte da cidade. Um prédio de oito andares, cinco apartamentos por andar. O porteiro era um baixinho barrigudo com a camisa manchada de gordura, os cabelos oleosos e a barba por fazer. O tipo de homem que venderia a própria mãe por uma nota de dez. O tipo de homem de quem eu precisava.
— Amigo, conhece este homem? — perguntei, mostrando a foto que Patrícia me dera, acompanhada da nota de dez. Ele já ia abrir a boca, mas uma faxineira saiu do elevador de serviço praguejando:
— Jorge, os vizinhos já estão reclamando do mau cheiro no 403, está contaminando o corredor. Bati na porta, mas ninguém atende.
Era o lugar que eu queria. Quando não se sabe que rumo tomar, siga sempre seu nariz. Guardei a foto e a nota de dez e, antes que o gordinho resmungasse, peguei o elevador.
A faxineira tinha razão. O quarto andar estava fedendo. Aquele cheiro não combinava com o ambiente limpo e bem iluminado do prédio. Era um cheiro que eu conhecia bem: cheiro de morte. Parei em frente à porta do 403. Não adiantaria bater, pois a faxineira acabara de dizer que tentara sem sucesso. A fechadura era daquelas que se abriam só de olhar, mas eu não estava afim de trabalhar nela sentindo aquele fedor. A solução seria o bom e velho pontapé na porta. Foi o que fiz. A porta escancarou-se para trás no primeiro golpe, e o fedor de carniça, ainda mais repugnante, invadiu minhas narinas.
Acendi um cigarro e o cheiro se misturou ao ambiente. Tabaco e morte. O palco digno para uma campanha do ministério da saúde. Mas a causa da morte em questão não fora o cigarro. Fora torcicolo.
A mulher ruiva jazia, nua, pendurada numa forca amarrada à viga mestra do apartamento. Abaixo do corpo havia uma cadeira tombada. Tentaram forjar um suicido, mas os hematomas nos pulsos da mulher, causados por uma corda apertada, diziam o contrário: assassinato. Serviço de amador.
O lugar estava na mais perfeita ordem. Comecei a procurar pistas. Sobre a mesa de centro encontrei algumas correspondências em nome de José de Almeida — contas de luz, extratos bancários, etc. —, o que indicava que Patrícia tinha razão a respeito do apartamento ser freqüentado pelo pai. Na verdade o apartamento pertencia ao pai. Em meio a estes papéis encontrei um papel menor, descartado dum bloco de anotações. Nele estava escrito, numa caligrafia quase ilegível, estilo médico: “Rita. Segunda, 23hs. Dama da Noite.” O Dama da Noite só poderia ser a conhecida casa noturna de Sherlock. Vasculhei uma bolsa feminina que estava sobre o sofá, e o documento de identidade da falecida ruiva batia com o nome do papel: Rita. Maria Rita Albuquerque, 28 anos. Verifiquei o bloco de anotações sobre uma mesinha ao lado do telefone. Mesmo papel, mesma caligrafia. O que indicava que fora José de Almeida quem anotara o dia (o mesmo em que sumira), a hora e o local do encontro com a ruiva que estava pendurada bem ao meu lado.
Eu já tinha o que precisava. Não havia mais o que fazer ali. Peguei o celular e telefonei para o Marreta. Ah, esqueci de contar: o Marreta havia se tornado o chefe de polícia de Sherlock. Capitão Dagoberto Silvério. Nos tornamos bons amigos, e ele casou-se com a Marcinha, quem diria?
— Alô, Marreta? Tenho um presunto pra você... Não, desta vez não foi eu. Anote o endereço... Rua Hipólito Mafra 266... Não, não vou esperar, to caindo fora... Pode deixar. Te mantenho informado... Marreta? Traga alguns incensos, o lugar fede.
Minhas pistas para descobrir o paradeiro de José de Almeida eram um cadáver e uma boate. Como a ruiva não poderia contar mais nada, o jeito era ir até a boate coletar algumas informações. E foi isso o que eu fiz.
Às 23hs eu chegava ao Dama da Noite. O lugar não era muito grande. Havia uma agradável banda de jazz no pequeno palco, algumas pessoas escoradas no balcão bebendo, e outras jogando sinuca nas duas mesas disponíveis no local. A boate, à primeira vista, não era grande coisa, mas o motivo de ela ser tão famosa na cidade era que ali podia se conseguir qualquer tipo de drogas a um bom preço. O dono do lugar, sabia eu, era o italiano Fabrício Andolini, um dos chefões da máfia local.
Fui até o balcão.
— Ei, barman, um uísque e uma informação.
— O uísque eu posso servir, quanto à informação...
— Estou procurando um amigo — mostrei a foto —, chama-se José de Almeida. Esteve aqui na semana passada com uma ruiva chamada Rita.
O barman era um tipo magricelo, de nariz aquilino e queixo quadrado. Hesitou evidentemente ao ver a foto de Almeida e mais ainda quando ouviu o nome da garota, mas não parecia estar disposto a abrir o bico.
— Escuta aqui, cara, se você ta procurando encrenca não me mete no meio. Eu não quero nem saber se você é tira ou o que for. Eu não sei de nada!
Ele sabia de algo. Tentei dar um incentivo a ele: puxei uma nota de cem e pus sobre o balcão. Ele titubeou por um momento e jogou um pano sobre a nota, depois se aproximou e sussurrou no meu ouvido:
— Aquele cara de jaqueta de couro na mesa do fundo trabalha pro Andolini. Ele sabe tudo o que você precisa. Agora se manda daqui.
O homem que o barman indicara estava sentado em companhia de um copo de vodca e de algumas gramas de cocaína. Eu teria de agir rápido antes de ele partir para o mundo dos sonhos. Me aproximei enquanto ele sugava o pó pelo nariz usando uma nota de cinqüenta, e joguei a foto de Almeida sobre a mesa, bem no meio do pó que ele aspirava.
— Preciso saber onde está esse cara.
Ele ergueu o olhar para mim. Estava alucinado com o efeito da droga.
— Dá o fora, cara! Se não eu mesmo o chuto daqui!
Acertei-lhe um cruzado no queixo que o fez tombar para trás junto com a cadeira. Em seguida saquei o 44 e encostei o cano em sua testa.
— Escute aqui, seu verme, estou sabendo que você sabe sobre o paradeiro desse cara, e também sei que seu patrão tem algo a ver com isso. Então é melhor me contar tudinho, se não quiser que eu chute seu rabo até a delegacia.
Ele gaguejou:
— Se eu falar sou um homem morto.
— Se não falar também é! — e engatilhei o revólver.
Ele hesitou um pouco e depois começou a cantar.
— Tem um depósito no porto onde o Andolini recebe as drogas. Eu vi esse cara lá ontem a noite.
— Onde exatamente fica esse depósito?
O viciado me deu as coordenadas do lugar e eu me dirigi para lá.
Encostei o opala a uns cem metros do tal depósito e caminhei até lá. Era como todos os outros depósitos da zona portuária, a diferença era que neste, além do segurança em forma de armário, havia um BMW de quinhentos mil parado na entrada. O carro de Fabrício Andolini.
Pus um cigarro na boca e caminhei na direção do segurança. Ele tinha quase o dobro do meu tamanho.
— Amigo, tem fogo?
Em resposta ele tentou sacar a uzi que tinha sobre o casaco, mas eu fui mais rápido. O meu 44 cantou e a bala explodiu no peito do gigante que tombou para trás derrubando a pequena porta lateral do depósito. De dentro do lugar quatro olhares atônitos eram dirigidos a mim. Reconheci em um deles o de Almeida que, para minha surpresa, foi o primeiro a jogar-se atrás de umas das várias caixas de madeira e começar a atirar. Os outros três o imitaram quase instantaneamente e eu não podia ficar pra trás. Escorei-me de costas para a parede ao lado da porta e acompanhei a banda fazendo meu clarinete calibre 44 tocar. Uma das minhas balas botou um dos caras para dormir, e o tiroteio apaziguou em seguida. Ficamos naquela posição cerca de vinte minutos. De vez em quando um disparo cortava o silêncio que se formara, mas ficamos no mesmo impasse: eu não entrava, eles não saiam. Estava na hora de chamar a cavalaria. Telefonei para o Marreta explicando a minha situação e em menos de dez minutos comecei a escutar o ruído das sirenes. Oito viaturas lotadas de policiais chegavam ao local. Tudo terminara.
Os três homens saíram de mãos para cima, e, enquanto eram algemados pelos policias, um deles se dirigiu a mim com um carregado sotaque italiano:
— Sabe quem eu sou?
Fiz que sim com a cabeça. Era Andolini.
— Vou mandar que o joguem aos peixes.
Não respondi à ameaça. Aqueles carcamanos sempre cumprem o que dizem. Mas eu estava tranqüilo, ele nem sabia meu nome.
— Dash! — a voz do Marreta cortou o ar como um trovão. — Que merda aconteceu aqui?
Andolini sorriu e foi empurrado para dentro de uma viatura.
Após as devidas explicações ao Marreta fomos todos à delegacia. Apertando José de Almeida descobrimos que foi ele quem matara a ruiva a mando de Andolini. Os dois trabalhavam juntos há anos. Andolini usava a imobiliária de Almeida como fachada para seus negócios sujos. Chamei Almeida de idiota por ter matado a garota dentro do próprio apartamento e deixado provas contra si mesmo, e ele respondeu que fora muito bem pago por aquilo e que iria viajar para o exterior na manhã seguinte, se eu não tivesse aparecido.
Depois de prestar depoimento fui liberado pelo Marreta. No dia seguinte eu procuraria Patrícia para informar a ela que o pai estava preso por homicídio.
Enquanto dirigia para casa naquela noite, eu ainda não sabia que um Alpha Romeo lotado de carcamanos cruzaria meu caminho... Mas isso é uma outra história.