domingo, 27 de março de 2011

Duas Cruzes



De onde venho diz-se, quando uma criança deixa o simples gesto de assoprar as chamas das velas de um bolo de aniversário, e passa a apagá-las com a ponta de dois dedos umedecidos, que ela perdeu o brilho de sua infância.
José de Deus, porém, nunca tivera um bolo de aniversário. Nunca tivera a oportunidade de cerrar os olhos, fazer um pedido e assoprar as chamas. Talvez se ele tivesse a chance, as apagaria com a ponta dos dedos de uma vez; mais ansioso para devorar o bolo do que para ganhar um presente. Não tivera tempo de ser criança.
José era um negrinho querido pela maioria dos peões da Estância do Paredão, no interior do Rio Grande do Sul. Todos os dias durante a colheita eles o viam para um lado e para outro com seu balaio de pêssegos e um pedaço de capim entre os dentes sempre à mostra.
A escravidão fora abolida há uns anos, mas Joca, tio de José, resolvera ficar trabalhando na estância por alguns trocados. José poderia ter ido embora com o pai, mas este morrera pelo chicote de Juvêncio, o capataz da fazenda. Às vezes, enquanto colhia os pêssegos, José refletia sobre a morte do pai do qual mal lembrava o rosto. Não saberia dizer ao certo se partiria daquele lugar junto dele para tentar uma nova vida, caso o pai decidisse isso. Mas achava que não. Seria impossível sair dali sem levar Rosário consigo. Aquela guria de pele cor de leite e cabelos tão louros quanto Deus pôde pintar, que de vez em quando fugia da saia da mãe para ir conversar com ele no meio dos pessegueiros.
As chicotadas haviam sido proibidas pelo Senhor Armando, dono da estância e pai de Rosário, mas José perdera a conta de quantas surras de vara levara por conta de ser pego conversando com a guria. Mas não tinha importância, pois ele a amava da forma mais pura que uma criança ama outra — eram verdadeiros amigos.
Mesmo aos dez anos de idade, José de Deus tinha os ombros largos e braços fortes, acostumado ao trabalho árduo praticamente desde que começara a andar. Costumava se exibir para a amiga erguendo-a com uma das mãos para que ela apanhasse alguma fruta mais alta na árvore, e ela gostava disso. Toda a vez que suas peles tão distintas se tocavam, ele lembrava com pesar a conversa que tivera certa vez com o tio:
— Zé, isso coisa boa num há di sê — alertara o tio. — Tu fica longe daquela guria si num quizé prova du chicote do Juvêncio... i du meu chinelo!
— Mas tio, eu gosto dela! — chorara José.
— Num mi interessa! Zé, pur mim tu podia fazê u qui quisesse, mas si tem duas coisa nu mundo que num si misturo, é pele branca cum pele preta. Vê bem tua cor, negrinho. Tu acha qui u Sinhô Armando ia querê um piá qui nem tu pra fia dele?
— Não — respondera José que perdera um pouco do sotaque do tio nas conversas com Rosário.
— Intão? Meu fio, a vida é dura cum nóis, mas temo que sê homi pra guentá. Temu que botá o peito na água e guentá u cunhete, como dizia teu pai. 

O conselho do tio adiantara por um tempo. Tempo em que ele fugia de qualquer maneira dos encontros com a amiga. Mas quando ela finalmente o fisgou, os dois tiveram uma conversa ainda mais importante:
— Por que andas fugindo de mim, Zezinho? Tu ta brabo comigo?
Ele respondeu que não e contou sobre a conversa com o tio.
— Nem tudo o que teu tio falou é verdade. Nossa pele não é totalmente diferente — ela pegou as mãos do amigo com as palmas de tom mais claro calejadas viradas para cima. — Vê? Quase iguais.
— Não são não. Nunca vão ser.
— Mas e o que tem isso? Arroz com feijão não é bom?
— É.
— E um não é preto e o outro branco?
— É.
— Então promete que vai esquecer essa besteira de cor e continuar sendo meu amigo.
— Prometo.
E ele ganhou um beijo no rosto que jamais esqueceria.

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Era 20 de setembro, o dia que José mais gostava, pois todos os peões se reuniam no grande galpão para a comemoração da data em que o General Neto, em 1835, proclamara a República Riograndense. Ele adorava o cheirinho de carne assada misturado ao da fumaça dos fogos de chão, adorava ver o chimarrão e a guampa de cachaça sendo passados de mão e mão, e adorava os chasques e milongas tristes serem dedilhadas nas gaitas e violões.
“... Tchêêê aprochega Gaúcho,
Perto do fogo de chão,
Conte causos da vida campeira
E dos velhos tempos de peão.
Conte causos da vida campeeeira
E dos velhos tempos de peão...”

Dizia umas das canções enquanto José devorava um naco de costela que lhe fora alcançado por um peão.
Certa hora, já madrugada alta, a música cessou um pouco, e os homens iniciaram uma conversa séria, a qual José não deu muita atenção, pois só procurava os olhos de Rosário, do outro lado do galpão, sentada ao lado da mãe. O portador da voz era Bonifácio, o homem mais velho entre eles, mais respeitado que o próprio patrão. Diziam dele que fora o “índio mais queixo-duro” no lombo de um rosilho, e que não perdera o dom, pois era daqueles que Deus forjara e pusera fora a receita. Ninguém ousava interromper sua narrativa. Todos o escutavam como paroquianos a um padre rezando a missa.
    — Têm gente estranha rodeando a estância — começou ele do interior do seu poncho. — Ontem fui buscar um novilho desgarrado lá pra costa do Camacuã, e vi rastro de três cavalos. Um deles tinha uma ferradura quebrada, então se algum de vocês notarem esses rastros no chão tente seguir, pois eu os perdi quando cruzaram o rio. Sei que é gente mal intencionada, porque seguiram um bom trecho por dentro d’água para despistar. Por que mais iam querer andar se entocando sem ter algo a esconder? Não são os peões do velho Rodrigues, porque eu fui falar com ele, e todos os homens dele tão pra banda do Lageado campeando uma tropa.
— Tchê, tu me deixa preocupado — disse Armando de um canto. — O que será que essa gente quer nas minhas terras?
— Não sei patrão, mas coisa boa não é.

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Passaram-se alguns dias desde a churrascada no galpão, e a vida de trabalhador de José de Deus voltara ao normal. Colhia pêssegos como sempre fazia, mas algo diferente lhe chamou atenção: uma linda flor branca, que ele não soube dizer o nome, jazia bela no topo de uma figueira. Ele ficou maravilhado ao ver aquilo, que com certeza não deveria estar ali. Está esperando por mim, pensou. Apressou-se a trepar na árvore e pegou a flor para dar de presente a Rosário. Uma flor para uma flor.
O negrinho correu como nunca com seu balaio de pêssegos em direção à casa grande da estância, onde chamaria pela amiga em sua janela e a presentearia com a flor. Mas quando chegou, notou que algo ruim acontecera, pois os peões, desesperados, saíam em disparada com seus cavalos.
Quando o Senhor Armando o viu, armou-se com o rebenque, o que fez José engolir em seco.
— Cadê a Rosário, negrinho?! — explodiu o homem.
— Ué, não sei não senhor — apressou-se a explicar José.
— Tu não me mentes guri!
— Não senhor. Eu tava lá com os meus pêssegos, e não vi a Rosário hoje. — E de repente um pensamento lhe ocorreu e ele sentiu o coração saltar dentro do peito. — Aconteceu alguma coisa?
— Ela... ela sumiu. — conseguiu dizer o homem, que pareceu, pela primeira vez, ter ficado descontente pela filha não estar junto do negrinho.
José sentiu seus cabelos se ouriçarem. Deixou a flor cair no chão e montou no primeiro cavalo que viu, ignorando os protestos de um peão, e saiu em disparada para o meio do mato.
Passaram-se algumas horas em que os homens, espalhados pelo campo, procuravam a guria desaparecida. O primeiro a vê-la foi José.
Ele escutara um leve gritinho, logo abafado, que reconheceu de imediato. Apeou do cavalo e penetrou no mato cerrado para ver o que os olhos de uma criança nunca deveriam ver: três homens estavam em cima da sua amiga. Um deles segurava as duas mãos contra o solo, outro tampava-lhe a boca, e o terceiro a estuprava. José, do interior de sua inocência, não entendeu bem o que eles estavam fazendo, mas sabia que estavam a maltratando.  Não pensou duas vezes. Agarrou um grosso pedaço de pau do chão e jogou-se sobre os três desconhecidos atacando ferozmente. Com um golpe certeiro ele rachou o crânio do primeiro, que desabou no chão, mas os outros, passada a surpresa, conseguiram dominá-lo. Com dificuldade, mas conseguiram.
Perto dali, Juvêncio, o capataz que matara o pai de José, escutou seus gritos e disparou em sua direção. Mas, ao chegar e espreitar os dois homens que continuavam seu serviço, tremeu com a possibilidade de enfrentá-los só. Ele recuou o cavalo e saiu em disparada para buscar ajuda. No caminho deparou-se com o velho Bonifácio.
— Bonifácio! — berrou. — Tão ali no mato. Dois homens com a guria. O negrinho também e...
— E tu não ajudaste seu merda? — trovejou Bonifácio. — Tu só eras macho contra homens acorrentados no poste! — e deferiu-lhe um golpe com o rebenque na face, que começou a brotar sangue de imediato. — Arranca-te daqui!
Bonifácio esporeou o tordilho mato adentro sem hesitar, e irrompeu com o cavalo no meio dos dois homens. Mesmo com seus oitenta anos, ele não os deu chance alguma: cortou-os aos dois com certeiros golpes de facão... Mas já tinham feito a judiaria.
O negrinho, seu amigo desde sempre, jazia com a garganta cortada num canto, o terror ainda explícito no rosto. Bonifácio foi verificar a menina, mas esta já não respirava. O homem pressionara demasiado forte seu pescoço frágil e a sufocara até a morte. O velho “índio” sacou seu lenço e limpou o sangue que corria pelas pernas de Rosário, depois tornou a vestir-lhe a saia. Poderia poupar os pais pelo menos daquilo. Eles não precisavam saber de tudo o que ocorrera.
Quando os outros peões começaram a chegar, ele contou como tudo acontecera. O patrão, com ódio no coração, deixou uma lágrima percorrer seu rosto.
— Foi culpa do negrinho — ele disse sem pena. — Ela vinha encontrar com ele, tenho certeza.
— Pois meça suas palavras — advertiu-lhe Bonifácio. — José matou sozinho um dos três. Talvez se o teu capataz não tivesse fugido os dois ainda estariam vivos.
Armando então percebeu nunca ter se arrependido tanto por proferir algumas palavras como naquele momento. Jurou para si mesmo que levaria flores todos os dias na sepultura no gurizinho até o dia de sua morte.
— Pegue tuas coisas e suma da minha estância — disse para Juvêncio num tom que fez este estremecer. O covarde não pensou duas vezes e partiu.

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Desde então, a quem chega à Estância do Paredão, no interior do Rio Grande do Sul, é permitido ver duas cruzes lado a lado, no alto de uma coxilha, sempre cobertas de flores. Ali jazem Rosário, a doce menina dos cabelos dourados, e José de Deus, o guri que jamais assoprara as chamas de uma vela de um bolo de aniversário.
  

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