terça-feira, 23 de novembro de 2010

A Juventude e a Literatura

A juventude de hoje está mudada, para não dizer perdida. No meu tempo o melhor passatempo que se tinha era um bom jogo de bola no meio da rua ou, talvez, soltar pandorga quando o vento estivesse bom. Para não falar nos banhos de chuva, na caçada de vaga-lumes, e nas intermináveis tardes fazendo bolinhas de sabão com um pedaço de cano e um pouco de detergente. Hoje não se vê um guri com mais de oito anos sem estar com um celular no bolso e um MP3 pendurado no pescoço. Esses dias um amigo meu presenteou o filho com uma bola.

— O que é isso? — perguntou o menino.
— Uma bola.
— Onde que liga?
— Não liga.
— Para que serve, então?
— Como, para que serve? É uma bola! Você chuta, faz embaixadinhas, quebra um vidro com ela...

O menino agradeceu o presente e foi para o quarto jogar vídeo-game.

No que concerne à literatura, é mais ou menos a mesma coisa que se passa. Os poucos adolescentes que vão contra as estatísticas e que ainda se interessam pela leitura, tendem a seguir a moda, lendo livros de qualidade duvidosa, graças à pesada propaganda imposta sobre eles. O pior de tudo é que alguns desses adolescentes se aventuram a iniciar uma carreira literária, tendo como base dois ou três desses “livros da moda”, e acabam por tornarem-se meros plagiadores das suas idéias medíocres. O resultado são textos de qualidade ainda inferior (se possível for) às suas fontes de inspiração.

Felizmente há exceções.

* * *

Era o dia anterior ao seu aniversário de doze anos e Marcolino pedira para sua mãe um livro de presente. O único que lera na sua curta existência fora Olhai os Lírios do Campo de Érico Veríssimo, livro este que furtara de um sebo. Claro que sua mãe não podia ficar sabendo do crime, mas isso não o impediu de passar noites intermináveis, à luz de uma lanterna, lendo e relendo aquelas deliciosas páginas. Daí o gosto pela literatura. Mas a verdade é que já estava farto de ler sempre a mesma coisa. Queria algo novo. Tinha fome de conhecimento. Mas tinha que ser algo diferente. Uma coisa nova. Mais emocionante. Então pedira para a mãe um terror ou um suspense.
Agora só aguardava a chegada da mãe com o presente. Seu aniversário seria no dia seguinte, mas o combinado fora que se ele arrumasse a casa, receberia o presente antecipadamente.

Finalmente ela chegou.
Parou à porta e olhou ao redor. A casa brilhava mais que coturno de capitão. Ele cumprira sua parte no trato, agora era a vez dela.

— Aqui seu livro.
— É sobre o que, mãe?
— Não sei direito. É um lançamento. Só sei que umas meninas estavam se estapeando pelos primeiros exemplares. Perguntei a respeito e uma delas me disse ser o melhor. É de vampiros ou algo do tipo.
Animado, Marcolino desembrulhou rapidamente a embalagem de presente e deparou-se com uma linda e reluzente capa negra gravada com letras vermelhas. Alisou-a, saboreando o relevo das letras e o perfume viciante das páginas. Esqueceu-se do mundo à sua volta e mergulhou na leitura.
Vinte páginas depois, descansou o livro sobre a mesinha da sala e foi em direção à porta.

— Aonde você vai, Marcolino? — perguntou a mãe.
— Vou locar o DVD do Blade!

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Mau Presságio

Provavelmente o inevitável acontecimento que mais abomina a vida de um pai, é a apresentação do primeiro namorado da filha. Que pai gosta de ver sua preciosa garotinha — aquela que ele embalou, contou histórias, levou para tomar sorvete e revelou o grande segredo por trás do arco-íris — ser tocada pelas mãos sujas de um homem qualquer? Pois ele sabe o que se passa na cabeça de um adolescente que está na idade de fabricar espinhas encerrado no banheiro.
No começo é tudo ilusão: palavras de carinho, o velho e infalível truque de se espreguiçar no cinema para colocar o braço sobre o ombro da menina, os beijinhos comportados no portão e as ligações de horas no meio da noite (o que sempre causa inexplicáveis aumentos na conta telefônica). Mas depois a coisa começa a ficar pesada: aquela mão boba por baixo do sutiã, que vai baixando até a saia, por entre as coxas e, se passar daí, já era.
Pelo menos no tempo do seu Afrânio era assim. Hoje não é necessário mais do que duas ou três cervejas na balada para acabar num 69 no motel.

* * *

O seu Afrânio roia as unhas. Isso só de aperitivo para acompanhar o meio litro de uísque que já bebera. Faltavam poucos minutos para a filha chegar com o primeiro namoradinho em casa. Namoradinho... o facão já estava amolado e o revólver lubrificado para botar o marmanjo para correr caso não gostasse. E não gostaria.
Enfim chegaram. O garoto tinha quatorze anos, ela treze. Sentaram-se no sofá em frente ao seu Afrânio, com um espaço de 45cm de distância um do outro — fazer o que? Norma da casa — ambos muito envergonhados e comportados até demais.
Deu-se início a entrevista: Idade? Telefone? Endereço? Tipo sanguíneo? Como vai no colégio? O que pretende para o futuro? Quando vai ser o casamento? Ah, o seu pai foi militar? Marinha? Pena, servi no exército. Tem um cachorro? Qual o nome dele? E as figurinhas da copa, faltam muitas? Pra que time torce? E acha o Ganso melhor que o Ronaldinho? Fala sério.
A todas as perguntas, por mais assustador que o velho fosse, o garoto tinha uma resposta satisfatória na ponta da língua. A filha com certeza estava orgulhosa, pois tinha certeza que o namorado agradara e até mesmo surpreendera o pai.
No final da visita, despedidas feitas, apertos de mão trocados. A filha, serelepe e ansiosa, dirigiu-se ao pai:

— E então, pai? O que achou dele?
— Não sei, filha, algo me diz que esse garoto não presta.
— Como assim, pai, por que acha isso?
— Sei lá, ele tem uma cara... Não quero mais ver você com esse garoto. Ponto final.
A filha desatou-se a chorar e, entre um soluço e outro, disse:
— Pô, achei que o senhor iria gostar. Ainda mais que ele sonha em ser jogador de futebol. Goleiro. E do seu time, o Flamengo!

domingo, 25 de abril de 2010

O Sonho

Sonhos são coisas curiosas.

A mente costuma nos pregar peças, às vezes. Enfeitiçar-nos, confundir-nos, brincar conosco e plantar diversas armadilhas pelo caminho, como se fossemos ratos de laboratório num labirinto, tentando encontrar o caminho certo. Morder ou não o queijo eletrocutado no fim da linha é questão de pura interpretação.

Aconteceu com o Arnaldo.

Ele sonhara à noite. No sonho, como em todos os sonhos, tudo fora confuso. As coisas estavam completamente embaralhadas em sua cabeça quando acordou. Entre alguns fragmentos de lembranças do sonho estavam: o golaço do Mengão sobre o Vasco na final do campeonato; as preliminares da transa — porque num sonho nunca se chega a consumar o ato — com aquela gostosa do trabalho que nunca lhe dava bola; os quatro primeiros números da loteria acumulada; e a esposa o traindo com seu velho amigo Pedrão. Mas quem é esse Pedrão? Não se lembrava de ter nenhum amigo chamado Pedrão. Nem velho nem novo. Ele logo concluiu que a traição era outra confusão do seu intelecto e que, como a possível transa com a gostosa, não existia. Era irreal.

Mas mesmo assim ficou com a pulga atrás da orelha, matutando os acontecimentos do sonho. E o pior de tudo era que a esposa iria viajar naquela manhã. Ela ficaria uma semana no interior, visitando seus pais. Não. Havia algo errado. Eram demasiadas coincidências para o seu gosto: um sonho de traição, uma viajem de uma semana e um amante chamado Pedrão. Pedrão! Tinha que investigar melhor aquilo.

Deixou a esposa na cama, ainda dormindo, e foi para a cozinha tomar café e ler seu jornal. Tinha preparado a armadilha. Quando ela apareceu, usando um roupão e um cabelo amassado, ele arriscou:

— O Pedrão acabou de ligar.

— Que Pedrão?

Não, não deu certo. Nenhuma reação suspeita, nenhum brilho no olhar. Nada. Apenas um bocejo e um desinteresse tão bem representado que se fosse fingimento ela mereceria um Oscar.

Bem, ela foi viajar. O Arnaldo tentou de todas as maneiras esquecer aquela bobagem, mas foi impossível. Não resistiu. Correu para o Google e encontrou uma firma de detetives particulares que funcionava na pequena cidade para onde a esposa fora. O anúncio dizia o seguinte:

Detetives S/A — Especializada em descobrir relações extraconjugais. Absoluto sigilo e discrição. Sua desgraça é o nosso segredo.

Perfeito. Discou o número e uma voz atendeu do outro lado da linha.

— Pronto.

— Alô, é da Detetives S/A?

— Sim, Detetive Pedrão falando. Em que posso ajudá-lo?

Desligou o telefone e resolveu confiar na esposa. Afinal, foi só um sonho.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O Intervalo Para o Cigarro

Não há coisa melhor do que fumar um cigarro no intervalo do trabalho. Quero dizer, há, mas no momento estou sem namorada e sem dinheiro para pagar por uma. Sabe como é, tem a prestação do carro.

O grande problema é que o patrão, seu Lindomar, quer nos privar desta dádiva que é uma das poucas vantagens que se têm por trabalhar na firma. Além disso, a única outra vantagem é o futebolzinho na sexta feira dos casados contra os solteiros.

Fui chamado à sala do patrão para discutir o assunto.

Seu Lindomar está achando que a fase difícil que a firma atravessa deve-se ao nosso precioso intervalo para o cigarrinho. Tentei explicar a ele que situação não tão boa da firma deve-se aos IPI, IR, IPTU, IRRF, ICMS e tantos outros Is que insistiam em subir. Ele rebateu dizendo que o único I que subia era a saia da Irislene, sua secretária, que era tamanho I de Insignificante. Com aquilo ele quis dizer que o intervalo para o cigarro havia acabado e ponto final. E o pior: fui o incumbido de transmitir a mensagem aos meus colegas.

Saí da sala do patrão cabisbaixo. Parei diante da porta, onde todos da repartição direcionaram olhares esperançosos em minha direção. Fiz o gesto universal do cigarro, levando o dedo médio e o indicador aos lábios, e em seguida bati com palma aberta de uma das mãos sobre a outra mão fechada, o gesto universal para o “estamos fodidos”. Todos se lamentaram silenciosamente, daquele jeito que se diz: “puta que o pariu” sem abrir a boca. Até mesmo o seu Aroldo, quarenta anos de firma, que havia largado o vício por causa de um câncer no pulmão protestou em forma de uma tossidela violenta.

Passamos aquela semana desolados. Não conseguíamos nos concentrar no trabalho. O pessoal da contabilidade errava o dois mais dois, o do marketing queria trocar a propaganda do intervalo na novela das oito na globo pelo intervalo dos desenhos animados do SBT, e até mesmo a Marcinha, que cuidava do cafezinho, estava trocando o açúcar pelo sal. Não, não podíamos continuar assim, se não só restaria o caos.

Na noite de sexta resolvemos cancelar o futebol e realizar uma reunião. Todos concordaram. Iríamos entrar em greve. Enquanto não nos devolvessem o direito de intervalo para o cigarro, não trabalharíamos. Até mesmo o seu Aroldo, entre uma tossida e outra, prometeu ser o primeiro a empunhar uma placa em prol da nossa causa, coitado.

Na segunda feira o seu Lindomar se assustou quando nos viu invadir seu escritório, munidos de placas e protestos, exigindo nossos direitos. Confesso que senti até pena do homem, pois lia-se em seus olhos que estava a fazer as contas: indenizações, treinamento de novo pessoal. Não, não. Teria de se render. Seu Lindomar fez um gesto para que fizéssemos silêncio, e subiu na sua mesa para iniciar o discurso.

— Está bem, está bem, vocês venceram. Devolvo o direito do intervalo para o cigarro, mas como uma condição: parem de pegar os cigarros do depósito se não a Cigarros Lindomar LTDA vai à falência.

Todos tatearam os bolsos à procura de moedas e correram à tabacaria da esquina.