domingo, 27 de março de 2011

Joguem aos Peixes


Meu nome é Malcon Dash.
Essa coisa de querer ser detetive começou quando eu ainda estava na escola, na quarta série, quando a Marcinha me ofereceu um cachorro quente e uma coca-cola em troca de eu descobrir quem estava assaltando sua lancheira às escondidas. Tive 95% de sucesso no meu primeiro caso, pois, oferecendo um gole da coca para um e uma mordida do cachorro quente para outro, descobri que o ladrão de lanches era o Marreta, um enorme garoto da quinta série. Os 5% que faltaram para o meu total sucesso foram devidos à surra que levei do Marreta.
Foi por causa do Marreta que comecei a praticar boxe, pois um bom detetive precisava saber se defender. Demorei uns três anos para conseguir dar minha primeira surra no Marreta. Na quinta série consegui acertar um cruzado no olho dele, mas a coça que levei fora duas vezes maior que as anteriores. Enfim, foi lá pela sétima ou oitava série que consegui vencê-lo pela primeira vez. Neste meio tempo minha fama de detetive foi crescendo. Meus serviços iam desde encontrar ladrões de mochila a vigiar os namorados das meninas do ensino médio.
Tenho um revólver Magnun calibre 44, como o dos filmes do Dirt Harry, pois um bom detetive precisa de uma arma que imponha respeito — coisa que eu não conseguiria com um 22 —. Acreditem. Por mais valente que seja o bandido, ele treme em frente ao cano de um 44. É como dizia meu velho pai, que Deus o tenha: “É atrás de uma mulher e na frente de uma arma que se conhece o homem.”
Hoje tenho quarenta anos. Enquanto conto como tornei-me o melhor detetive licenciado de Sherlock, estou sentado atrás da minha escrivaninha, com os pés jogados para o alto, sobre ela, esperando algum cliente. O cinzeiro transborda de baganas de cigarro, meu único vício. Além do café. E do uísque. Sobre a escrivaninha há algumas pilhas de papéis e recortes de jornais de velhos casos. Hoje são verdadeiros, mas antigamente, no começo, eu espalhava qualquer papel aleatoriamente para dar ao escritório um ar de interessante. Por este mesmo motivo que uso as roupas que uso: para ser interessante. No mesmo estilo dos detetives dos anos quarenta, uso um paletó escuro com a gravata frouxa no colarinho, e um chapéu de feltro. Não que estas roupas sejam tão incomuns em Sherlock, mas eu não poderia ser um detetive de jeans e camiseta. Onde eu esconderia o 44 que carrego no coldre de ombro? Também uso alguns disfarces de vez em quando. Certa vez tive que me disfarçar de cowboy de rodeios para pegar um ladrão que atuava no interior, mas esta história fica para outra vez. Está chegando cliente.
Era uma garota loira, bonita, por volta dos vinte anos. Dava para saber a idade por causa do par de seios dez para as duas, e não quinze para as três, como os da minha última namorada. Fiz sinal para que se sentasse na cadeira à minha frente, ela obedeceu e depois sacou um lenço da bolsa para enxugar uma lágrima. Senti-me um otário por reparar nos seus seios num momento daqueles, mas o que eu podia fazer?
— Em que posso ser útil?
— Meu pai está sumido há cinco dias. Saiu para o trabalho na segunda, e não atende o celular e nem manda notícias desde então.
— Por que não foi à polícia? Eles procuram de graça.
— Nós gostaríamos de um pouco de discrição, sabe?
— Nós?
— Minha mãe e eu.
— Tem uma foto do seu pai? Preciso saber tudo: nome, profissão, idade, seus hábitos...
— Acho que sei onde ele está, senhor.
— Dash! Me chame de Dash.
Uma das coisas que me deixavam puto era uma garota jovem e bonita me chamar de senhor. Diabos!
— Se sabe onde ele está, por que veio a mim?
— Bem, eu não sei exatamente. Eu já o segui umas duas vezes até um prédio, mas não sei o número do apartamento que ele usava.
— Usava para quê?
Ela inclinou-se sobre a mesa e trouxe seu rosto próximo ao meu. Tentei em vão não olhar seu decote. Então ela sussurrou, parecendo ter medo de ser ouvida:
— Acredito que meu pai tenha uma amante.
Que novidade.
— E sua mãe, pensa o mesmo?
— Minha mãe sofre de Alzheimer, senhor. Às vezes não reconhece nem a mim.
O “senhor” de novo. Não fosse pela situação da garota e pelo par de seios eu a chutaria para fora.
— Entendo. Preciso do endereço do prédio, a foto do seu pai e os dados que te pedi.
Ela me deu uma foto do 3x4 do pai e foi me dizendo tudo o que sabia sobre ele. Chamava-se José de Almeida, tinha 45 anos, e era dono de uma imobiliária. À medida que ela falava, eu tomava nota no meu caderninho. Ao fim do relato levantei-me da cadeira. O gesto universal para dizer que a conversa havia acabado. A garota (que se chamava Patrícia.) também levantou-se.
— Cobro quinhentos paus a diária e mais despesas, como gasolina e algum possível suborno, por exemplo. Está bem assim?
— Está. Dinheiro não é problema.
— Ok. Não se preocupe. Encontrarei seu pai, e em breve mandarei notícias.
A garota deixou o escritório. Eram 11h30min e como parecia ser um simples caso de traição seguido de deserção do casamento, fácil de resolver como tantos outros, resolvi ir almoçar no Boca Nervosa. A única coisa em Sherlock melhor que o filé com fritas do Boca Nervosa, era a Anabela, a garçonete do lugar.
Subi no meu opala e me dirigi ao restaurante. Dez minutos depois eu chegava ao Boca Nervosa, que ficava numa ruazinha pouco movimentada do centro. Sentei-me ao balcão, como de costume.
— O mesmo de sempre, Dash? — perguntou Anabela, linda como sempre naquele vestidinho curto e justo.
— O mesmo, boneca.
Pouco depois chegava minha refeição acompanhada de uma caneca de cerveja. A grande vantagem de ser o próprio patrão é poder beber em serviço.
— Então, Bela, quando vamos sair para tomar aquela bebida?
— Eu não bebo Dash, você sabe.
— E um cineminha, então? Está passando um novo do Chuck Norris.
— Outra hora, Dash.
— Uma comédia romântica, quem sabe?
— O problema não é o filme, Dash.
Diabos! Em Sherlock apenas uma garota em mil não gosta de caras durões que carregam uma arma. Para meu azar, Anabela era uma dessas.
Como minhas cantadas não estavam rendendo, resolvi ir de uma vez até o tal prédio onde a filha presumia estar o pai desaparecido. O lugar ficava na zona norte da cidade. Um prédio de oito andares, cinco apartamentos por andar. O porteiro era um baixinho barrigudo com a camisa manchada de gordura, os cabelos oleosos e a barba por fazer. O tipo de homem que venderia a própria mãe por uma nota de dez. O tipo de homem de quem eu precisava.
— Amigo, conhece este homem? — perguntei, mostrando a foto que Patrícia me dera, acompanhada da nota de dez. Ele já ia abrir a boca, mas uma faxineira saiu do elevador de serviço praguejando:
— Jorge, os vizinhos já estão reclamando do mau cheiro no 403, está contaminando o corredor. Bati na porta, mas ninguém atende.
Era o lugar que eu queria. Quando não se sabe que rumo tomar, siga sempre seu nariz. Guardei a foto e a nota de dez e, antes que o gordinho resmungasse, peguei o elevador.
A faxineira tinha razão. O quarto andar estava fedendo. Aquele cheiro não combinava com o ambiente limpo e bem iluminado do prédio. Era um cheiro que eu conhecia bem: cheiro de morte. Parei em frente à porta do 403. Não adiantaria bater, pois a faxineira acabara de dizer que tentara sem sucesso. A fechadura era daquelas que se abriam só de olhar, mas eu não estava afim de trabalhar nela sentindo aquele fedor. A solução seria o bom e velho pontapé na porta. Foi o que fiz. A porta escancarou-se para trás no primeiro golpe, e o fedor de carniça, ainda mais repugnante, invadiu minhas narinas.
Acendi um cigarro e o cheiro se misturou ao ambiente. Tabaco e morte. O palco digno para uma campanha do ministério da saúde. Mas a causa da morte em questão não fora o cigarro. Fora torcicolo.
A mulher ruiva jazia, nua, pendurada numa forca amarrada à viga mestra do apartamento. Abaixo do corpo havia uma cadeira tombada. Tentaram forjar um suicido, mas os hematomas nos pulsos da mulher, causados por uma corda apertada, diziam o contrário: assassinato. Serviço de amador.
O lugar estava na mais perfeita ordem. Comecei a procurar pistas. Sobre a mesa de centro encontrei algumas correspondências em nome de José de Almeida — contas de luz, extratos bancários, etc. —, o que indicava que Patrícia tinha razão a respeito do apartamento ser freqüentado pelo pai. Na verdade o apartamento pertencia ao pai. Em meio a estes papéis encontrei um papel menor, descartado dum bloco de anotações. Nele estava escrito, numa caligrafia quase ilegível, estilo médico: “Rita. Segunda, 23hs. Dama da Noite.” O Dama da Noite só poderia ser a conhecida casa noturna de Sherlock. Vasculhei uma bolsa feminina que estava sobre o sofá, e o documento de identidade da falecida ruiva batia com o nome do papel: Rita. Maria Rita Albuquerque, 28 anos. Verifiquei o bloco de anotações sobre uma mesinha ao lado do telefone. Mesmo papel, mesma caligrafia. O que indicava que fora José de Almeida quem anotara o dia (o mesmo em que sumira), a hora e o local do encontro com a ruiva que estava pendurada bem ao meu lado.
Eu já tinha o que precisava. Não havia mais o que fazer ali. Peguei o celular e telefonei para o Marreta. Ah, esqueci de contar: o Marreta havia se tornado o chefe de polícia de Sherlock. Capitão Dagoberto Silvério. Nos tornamos bons amigos, e ele casou-se com a Marcinha, quem diria?
— Alô, Marreta? Tenho um presunto pra você... Não, desta vez não foi eu. Anote o endereço... Rua Hipólito Mafra 266... Não, não vou esperar, to caindo fora... Pode deixar. Te mantenho informado... Marreta? Traga alguns incensos, o lugar fede.
Minhas pistas para descobrir o paradeiro de José de Almeida eram um cadáver e uma boate. Como a ruiva não poderia contar mais nada, o jeito era ir até a boate coletar algumas informações. E foi isso o que eu fiz.
Às 23hs eu chegava ao Dama da Noite. O lugar não era muito grande. Havia uma agradável banda de jazz no pequeno palco, algumas pessoas escoradas no balcão bebendo, e outras jogando sinuca nas duas mesas disponíveis no local. A boate, à primeira vista, não era grande coisa, mas o motivo de ela ser tão famosa na cidade era que ali podia se conseguir qualquer tipo de drogas a um bom preço. O dono do lugar, sabia eu, era o italiano Fabrício Andolini, um dos chefões da máfia local.
Fui até o balcão.
— Ei, barman, um uísque e uma informação.
— O uísque eu posso servir, quanto à informação...
— Estou procurando um amigo — mostrei a foto —, chama-se José de Almeida. Esteve aqui na semana passada com uma ruiva chamada Rita.
O barman era um tipo magricelo, de nariz aquilino e queixo quadrado. Hesitou evidentemente ao ver a foto de Almeida e mais ainda quando ouviu o nome da garota, mas não parecia estar disposto a abrir o bico.
— Escuta aqui, cara, se você ta procurando encrenca não me mete no meio. Eu não quero nem saber se você é tira ou o que for. Eu não sei de nada!
Ele sabia de algo. Tentei dar um incentivo a ele: puxei uma nota de cem e pus sobre o balcão. Ele titubeou por um momento e jogou um pano sobre a nota, depois se aproximou e sussurrou no meu ouvido:
— Aquele cara de jaqueta de couro na mesa do fundo trabalha pro Andolini. Ele sabe tudo o que você precisa. Agora se manda daqui.
O homem que o barman indicara estava sentado em companhia de um copo de vodca e de algumas gramas de cocaína. Eu teria de agir rápido antes de ele partir para o mundo dos sonhos. Me aproximei enquanto ele sugava o pó pelo nariz usando uma nota de cinqüenta, e joguei a foto de Almeida sobre a mesa, bem no meio do pó que ele aspirava.
— Preciso saber onde está esse cara.
Ele ergueu o olhar para mim. Estava alucinado com o efeito da droga.
— Dá o fora, cara! Se não eu mesmo o chuto daqui!
Acertei-lhe um cruzado no queixo que o fez tombar para trás junto com a cadeira. Em seguida saquei o 44 e encostei o cano em sua testa.
— Escute aqui, seu verme, estou sabendo que você sabe sobre o paradeiro desse cara, e também sei que seu patrão tem algo a ver com isso. Então é melhor me contar tudinho, se não quiser que eu chute seu rabo até a delegacia.
Ele gaguejou:
— Se eu falar sou um homem morto.
— Se não falar também é! — e engatilhei o revólver.
Ele hesitou um pouco e depois começou a cantar.
— Tem um depósito no porto onde o Andolini recebe as drogas. Eu vi esse cara lá ontem a noite.
— Onde exatamente fica esse depósito?
O viciado me deu as coordenadas do lugar e eu me dirigi para lá.
Encostei o opala a uns cem metros do tal depósito e caminhei até lá. Era como todos os outros depósitos da zona portuária, a diferença era que neste, além do segurança em forma de armário, havia um BMW de quinhentos mil parado na entrada. O carro de Fabrício Andolini.
Pus um cigarro na boca e caminhei na direção do segurança. Ele tinha quase o dobro do meu tamanho.
— Amigo, tem fogo?
Em resposta ele tentou sacar a uzi que tinha sobre o casaco, mas eu fui mais rápido. O meu 44 cantou e a bala explodiu no peito do gigante que tombou para trás derrubando a pequena porta lateral do depósito. De dentro do lugar quatro olhares atônitos eram dirigidos a mim. Reconheci em um deles o de Almeida que, para minha surpresa, foi o primeiro a jogar-se atrás de umas das várias caixas de madeira e começar a atirar. Os outros três o imitaram quase instantaneamente e eu não podia ficar pra trás. Escorei-me de costas para a parede ao lado da porta e acompanhei a banda fazendo meu clarinete calibre 44 tocar. Uma das minhas balas botou um dos caras para dormir, e o tiroteio apaziguou em seguida. Ficamos naquela posição cerca de vinte minutos. De vez em quando um disparo cortava o silêncio que se formara, mas ficamos no mesmo impasse: eu não entrava, eles não saiam. Estava na hora de chamar a cavalaria. Telefonei para o Marreta explicando a minha situação e em menos de dez minutos comecei a escutar o ruído das sirenes. Oito viaturas lotadas de policiais chegavam ao local. Tudo terminara.
Os três homens saíram de mãos para cima, e, enquanto eram algemados pelos policias, um deles se dirigiu a mim com um carregado sotaque italiano:
— Sabe quem eu sou?
Fiz que sim com a cabeça. Era Andolini.
— Vou mandar que o joguem aos peixes.
Não respondi à ameaça. Aqueles carcamanos sempre cumprem o que dizem. Mas eu estava tranqüilo, ele nem sabia meu nome.
— Dash! — a voz do Marreta cortou o ar como um trovão. — Que merda aconteceu aqui?
Andolini sorriu e foi empurrado para dentro de uma viatura.
Após as devidas explicações ao Marreta fomos todos à delegacia. Apertando José de Almeida descobrimos que foi ele quem matara a ruiva a mando de Andolini. Os dois trabalhavam juntos há anos. Andolini usava a imobiliária de Almeida como fachada para seus negócios sujos. Chamei Almeida de idiota por ter matado a garota dentro do próprio apartamento e deixado provas contra si mesmo, e ele respondeu que fora muito bem pago por aquilo e que iria viajar para o exterior na manhã seguinte, se eu não tivesse aparecido.
Depois de prestar depoimento fui liberado pelo Marreta. No dia seguinte eu procuraria Patrícia para informar a ela que o pai estava preso por homicídio.
Enquanto dirigia para casa naquela noite, eu ainda não sabia que um Alpha Romeo lotado de carcamanos cruzaria meu caminho... Mas isso é uma outra história.

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