sábado, 10 de setembro de 2011

Inconsciente



Virei bruscamente o volante para a direita, desviando de um caminhão mais lento, quase batendo em outro carro logo à frente. Engrenei a terceira marcha no Omega e furei o sinal vermelho, ignorando as buzinas. Fodam-se! Os bandidos estavam escapando num Honda Civic prata logo após terem assaltado uma agência do Banco do Brasil. O azar deles foi terem topado comigo enquanto eu passava por acaso pela rua.
Cambiei para a quarta e ganhei um pouco de terreno, quando uma espingarda calibre 12’ surgiu pela janela traseira do Honda, disparando e explodindo o pára-brisa do meu carro; alguns cacos cortando o meu rosto. Saquei minha arma — uma pistola Taurus de 15 tiros — do coldre de ombro e respondi ao fogo, espedaçando o vidro traseiro do carro em fuga.
O cano longo da espingarda surgiu novamente e eu me abaixei mantendo o pé no acelerador; depois do estrondo do disparo o encosto de cabeça do meu assento ficou em frangalhos, e eu ergui-me atirando duas vezes, mas desta vez as balas tiveram destino certo — acertando o sujeito da espingarda no peito — botando-o fora de combate.
O Honda virou à esquerda numa rua estreita. Reduzi para segunda marcha e afundei o pé no acelerador, fazendo com que o Omega entrasse na curva jogando a traseira, mas, tão logo a nova rua entrou no meu campo de visão, pude ver uma Pick-Up vindo em minha direção, colidindo de frente pelo lado dianteiro do meu carro, que girou duas vezes e foi parar dentro de uma farmácia. Com o rosto encharcado de sangue, vislumbrei com um meio sorriso um senhor idoso urinar nas calças um pouco antes de eu apagar.

——————//——————


Quando acordei era tudo branco à minha volta. O paraíso nem sequer passou pelos meus pensamentos, pois se existia essa coisa de céu e inferno, o meu destino seria o andar de baixo e não o de cima. Tive a certeza de que ainda estava vivo quando uma forte dor latejou em minha cabeça, dez vezes mais forte que a ressaca de uma boa bebedeira. Ainda atordoado, escutei um bip contínuo, oriundo de um aparelho ligado ao meu corpo — estava em um hospital.
Sentei-me na cama e notei uma garotinha — de não mais que dez anos, cabeça raspada e grandes olhos castanhos, vestindo uma ridícula camisola branca de bolinhas, igualzinha à minha — sentada na cama ao lado, sorrindo para mim. Senti a barba pinicando em meu pescoço e a julgar por seu tamanho, calculei que estivera desacordado por três dias.
— Por um acaso você não teria um cigarro, teria? — perguntei à menina.
— Não tem graça — ela respondeu, desmanchando o sorriso.
— É, eu sei, desculpe.
Ela abriu o sorriso novamente, mudando de humor ao som de uma frase, da maneira como só as crianças são capazes.
— É uma grande merda, não é? A quimioterapia?
— Você disse um palavrão.
— Ah, porra, descul... oh, merda... olha, é melhor eu ficar calado.
— É muito ruim.
— O quê?
— A quimioterapia. É muito ruim.
— Pois é. Minha esposa também passou por isso. Sinto muito.
— Ela esteve aqui.
— Quem?
— Sua esposa. Ela é bonita.
— Não, não. Você deve ter confundido. Quem deve ter vindo é a Alice, minha parceira na polícia.
— Ela disse que era sua esposa.
— A Alice é assim, gosta de piadas. Talvez seja por isso que me atura há tanto tempo.
— E como você tem certeza de que não era sua esposa?
— Bem, nós não estamos mais juntos — improvisei. Não queria dizer para uma garotinha fazendo quimioterapia que minha esposa morrera de câncer há cinco anos.
— Por quê?
— Por que o quê?
— Por que não estão mais juntos?
— Bem, aconteceu uma coisa ruim e tivemos que nos separar. Olha, me dá licença, preciso ir dar uma mij... ir fazer xixi.

Passei o restante daquele dia submetido a uma série de exames. Pedi alguns comprimidos para dor de cabeça e insisti que me deixassem ir embora, mas em vão. Algo podia estar errado no meu cérebro, dissera o médico, por isso eu teria que ficar alguns dias sob observação.
Estava doido por um cigarro. Tentei de várias formas conseguir algum, mas o melhor que arranjei foram algumas balinhas de hortelã. Uma enfermeira gostosa disse-me que aproveitasse aqueles dias para desintoxicar, e talvez até conseguisse parar de vez. Diabos! Eu não estava nem um pouco a fim de abandonar o meu vício. Até pensei em ameaçar prendê-la se não me trouxesse um bom maço de Mallboro, mas acabei desistindo da idéia.
À noite o terceiro andar do hospital estava mergulhado na escuridão e em um silêncio que só era quebrado pelo burburinho baixo oriundo do primeiro andar, onde funcionava o pronto socorro.  
Para compensar minha insônia, eu assistia um desenho animado idiota no volume mínimo da televisão, enquanto a garotinha com câncer dormia tranqüila na cama ao lado da minha. Me perguntei onde diabos estavam os pais da minha companheira de quarto, pois não os vira uma única vez desde que chegara ali.
Tentei apagar aquilo da mente. Talvez conseguisse saciar minha curiosidade com uma boa conversa pela manhã. Voltei minha atenção para o desenho animado, onde um macaquinho com cara de terrorista acendia uma banana de dinamite, quando ouvi um ruído metálico vindo do corredor. Era algo constante, que se repetia ao intervalo de cinco segundos ou menos, como uma engrenagem mal lubrificada trabalhando.
Aquele “nhec” começou como um sussurro distante e foi tornando-se mais alto à medida que se aproximava. Repetiu-se bem perto quando a luz automática do corredor se acendeu. Notei uma sombra passar, devagar e despreocupada, cobrindo brevemente o pouco de claridade que penetrava pela fresta abaixo da porta. O ruído foi afastando-se preguiçosamente, e a luz do corredor tornou a apagar.
Sentei-me na cama e experimentei um pouco de tontura. Calcei um par de pantufas, deslizei até a porta e a abri devagar. Parei no umbral e a luz ganhou vida outra vez. À minha esquerda não via-se nada além do completo negrume. À direita, ao final de um intervalo escuro que calculei ter quinze metros, o corredor fazia uma curva, onde a última lâmpada no meu campo visual se apagava.
Segui o andarilho noturno a passos lentos. As lâmpadas fluorescentes iam acendendo-se à minha frente e apagando-se às minhas costas. O corredor era largo; as paredes cobertas por azulejos verdes recendendo um cheiro desagradável de desinfetante. Comecei a ouvir o ruído metálico novamente e notei um pouco de claridade opaca vinda da curva para onde me dirigia.
Segui avançando. Um vidro quebrou em algum canto. O desconhecido ruído metálico deu lugar a um farfalhar que me lembrou um gato assaltando uma lata de lixo na calada da noite.
Venci a curva e vi que aquele corredor era mais curto. Do ponto onde eu estava ele parecia desembocar em um lugar amplo logo à frente, onde a luz mantinha-se acesa. Uma placa com uma seta indicando a área da radiologia pendia do teto por finas correntes. Segui por aquele caminho e fui parar num saguão completamente silencioso. Um grande balcão circular com dois monitores desligados tinha destaque no centro. Num canto, próximo a um conjunto de cadeiras de estofado escuro, havia uma máquina que dispensava guloseimas em troca de moedas — tinha o vidro quebrado, alguns biscoitos e salgadinhos espalhados pelo piso verde — que explicava os últimos ruídos que eu ouvira.
Decidi explorar melhor o lugar, com o objetivo de descobrir o pão duro que não queria gastar algumas moedas. Mal iniciei minha busca, escutei passos apressados e risadas vindas do corredor maior, de onde eu viera inicialmente. Corri para lá e pude notar o jogo de luzes acendendo e apagando, acendendo e apagando: alguém corria. Quanto cheguei ao corredor, a última luz se extinguiu num ponto um pouco além do meu quarto e uma porta bateu.
Investi decidido naquela direção. Chegando próximo à porta que batera comecei a escutar barulhos lá dentro, como que estivessem revirando algo. Minha mão fez o gesto automático de buscar a arma, mas não a encontrou onde deveria estar. Era tudo ou nada. Escancarei a porta e... Ninguém! Um pequeno depósito de produtos de limpeza em perfeita ordem.
Sem entender mais nada, um pouco atordoado pela tontura que agora me consumia, voltei ao meu quarto. A televisão continuava ligada no canal de desenhos, mas a garotinha não estava mais lá; a cama ao lado da minha tinha os lençóis sobriamente estendidos, como se nunca usados. Voltei-me imediatamente em direção à porta com o intuito de buscar alguém acordado que me explicasse o que estava acontecendo, mas a tontura me pegou de vez e desabei antes de dar o primeiro passo.

——————//——————


Despertei não sei quanto tempo depois. Ergui-me do chão devagar, temeroso, mas a dor de cabeça e a tontura haviam cessado. O quarto era o mesmo, mas havia mudado: estava completamente vazio; as paredes escuras, sujas, como no interior de uma casa há muito tempo abandonada. Tentei pôr os sentidos em ordem. O que estava acontecendo comigo? Em resposta veio aquele som metálico, enferrujado, vindo do lado de fora, penetrando através da porta marrom-escura em estado deplorável.
Pus a mão na maçaneta e a porta desfragmentou-se em poeira. O corredor era o mesmo que eu vira da última vez, mas, como o quarto, também estava diferente. O azulejo, outrora verde e limpo, tingia-se aqui e ali com manchas negras. Todas as lâmpadas quebradas, algumas pendendo do teto por um resto de fio, balançando de um lado para outro. Alguns raios de sol invadiam o lugar pelas janelas no alto e deixavam à mostra partículas de poeira dançando no ar. O piso estava coberto com um manto prateado que à primeira vista parecia neve, mas com uma análise melhor notei serem cinzas: eu estava num lugar que fora vitima de um grande incêndio.
O ruído metálico continuava. No chão havia pequenas pegadas entre duas linhas ininterruptas que seguiam corredor adiante como se fossem os trilhos de um trem. Corri naquela direção e o ruído aumentou. Fiz a curva para a direita quando o corredor terminou e, finalmente, descobri de onde provinha aquele som: a menina de cabelos raspados empurrava vagarosamente uma cadeira de rodas em direção ao nada.
— Ei, menina! — gritei. — Pare aí!
Ela parou. Permaneceu imóvel enquanto eu avançava pela suas costas, como que tivesse levado um choque. Após alguns passos dei a volta por ela e deparei-me com algo que eu nunca esperava ver: minha falecida esposa era quem estava sentada na cadeira de rodas. Tinha os olhos avermelhados, cercados por olheiras roxas. Os cabelos escuros com fios grisalhos cobrindo parte da testa pálida decorada por algumas novas rugas. Exatamente a mesma expressão emanando fraqueza que possuía em seus últimos dias de vida.
Caí de joelhos. Tentei dizer qualquer coisa, mas minha voz morreu na garganta.
— Está tudo bem — disse sorridente a garotinha.
— Fa... fale comigo — pedi à minha mulher, ignorando a menina.
— Ela não pode. Disse que ainda não é o momento.
Fiz uma cara de quem não estava entendo nada e a criança entendeu.
— Venha comigo.
A segui. Ela empurrando a cadeira de rodas com minha mulher inerte sobre ela, sem piscar ou mudar de expressão. Descemos ao segundo andar do hospital, onde parecia estar tudo na mais perfeita ordem, com médicos e pacientes para todos os lados. Ninguém parecia nos notar, mas quando alguma pessoa passava por onde nós andávamos, desviava seu trajeto, evitando esbarrar em nós como se nos pressentisse. A cadeira de rodas com uma engrenagem rangendo constantemente.
— Ali, veja — apontou a menina.
Eu vi. Em um quarto particular, ligado a vários aparelhos, meu corpo jazia em estado de coma.
— É hora de voltar — ela disse, e eu desmaiei.

——————— // ———————

Despertei sem dor alguma, apenas sentindo a boca seca. Olhei para o lado e vi Silvério — um negro alto com um sorriso largo sublinhando o volumoso bigode —, meu velho amigo de infância.
— Até que enfim acordou, parceiro.
— Por favor, me diga que tem um cigarro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário