Virei
bruscamente o volante para a direita, desviando de um caminhão mais lento,
quase batendo em outro carro logo à frente. Engrenei a terceira marcha no Omega
e furei o sinal vermelho, ignorando as buzinas. Fodam-se! Os bandidos estavam escapando
num Honda Civic prata logo após terem assaltado uma agência do Banco do Brasil.
O azar deles foi terem topado comigo enquanto eu passava por acaso pela rua.
Cambiei para
a quarta e ganhei um pouco de terreno, quando uma espingarda calibre 12’ surgiu pela janela traseira
do Honda, disparando e explodindo o pára-brisa do meu carro; alguns cacos
cortando o meu rosto. Saquei minha arma — uma pistola Taurus de 15 tiros — do
coldre de ombro e respondi ao fogo, espedaçando o vidro traseiro do carro em fuga.
O cano longo
da espingarda surgiu novamente e eu me abaixei mantendo o pé no acelerador;
depois do estrondo do disparo o encosto de cabeça do meu assento ficou em
frangalhos, e eu ergui-me atirando duas vezes, mas desta vez as balas tiveram
destino certo — acertando o sujeito da espingarda no peito — botando-o fora de
combate.
O Honda virou
à esquerda numa rua estreita. Reduzi para segunda marcha e afundei o pé no
acelerador, fazendo com que o Omega entrasse na curva jogando a traseira, mas,
tão logo a nova rua entrou no meu campo de visão, pude ver uma Pick-Up vindo em
minha direção, colidindo de frente pelo lado dianteiro do meu carro, que girou
duas vezes e foi parar dentro de uma farmácia. Com o rosto encharcado de
sangue, vislumbrei com um meio sorriso um senhor idoso urinar nas calças um
pouco antes de eu apagar.
——————//——————
Quando
acordei era tudo branco à minha volta. O paraíso nem sequer passou pelos meus
pensamentos, pois se existia essa coisa de céu e inferno, o meu destino seria o
andar de baixo e não o de cima. Tive a certeza de que ainda estava vivo quando
uma forte dor latejou em minha cabeça, dez vezes mais forte que a ressaca de
uma boa bebedeira. Ainda atordoado, escutei um bip contínuo, oriundo de um
aparelho ligado ao meu corpo — estava em um hospital.
Sentei-me na
cama e notei uma garotinha — de não mais que dez anos, cabeça raspada e grandes
olhos castanhos, vestindo uma ridícula camisola branca de bolinhas, igualzinha
à minha — sentada na cama ao lado, sorrindo para mim. Senti a barba pinicando
em meu pescoço e a julgar por seu tamanho, calculei que estivera desacordado
por três dias.
— Por um
acaso você não teria um cigarro, teria? — perguntei à menina.
— Não tem
graça — ela respondeu, desmanchando o sorriso.
— É, eu sei,
desculpe.
Ela abriu o
sorriso novamente, mudando de humor ao som de uma frase, da maneira como só as
crianças são capazes.
— É uma
grande merda, não é? A quimioterapia?
— Você disse
um palavrão.
— Ah, porra,
descul... oh, merda... olha, é melhor eu ficar calado.
— É muito
ruim.
— O quê?
— A
quimioterapia. É muito ruim.
— Pois é.
Minha esposa também passou por isso. Sinto muito.
— Ela esteve
aqui.
— Quem?
— Sua esposa.
Ela é bonita.
— Não, não.
Você deve ter confundido. Quem deve ter vindo é a Alice, minha parceira na
polícia.
— Ela disse
que era sua esposa.
— A Alice é
assim, gosta de piadas. Talvez seja por isso que me atura há tanto tempo.
— E como você
tem certeza de que não era sua esposa?
— Bem, nós
não estamos mais juntos — improvisei. Não queria dizer para uma garotinha
fazendo quimioterapia que minha esposa morrera de câncer há cinco anos.
— Por quê?
— Por que o
quê?
— Por que não
estão mais juntos?
— Bem, aconteceu
uma coisa ruim e tivemos que nos separar. Olha, me dá licença, preciso ir dar
uma mij... ir fazer xixi.
Passei o
restante daquele dia submetido a uma série de exames. Pedi alguns comprimidos
para dor de cabeça e insisti que me deixassem ir embora, mas em vão. Algo podia estar
errado no meu cérebro, dissera o médico, por isso eu teria que ficar alguns
dias sob observação.
Estava doido
por um cigarro. Tentei de várias formas conseguir algum, mas o melhor que
arranjei foram algumas balinhas de hortelã. Uma enfermeira gostosa disse-me que
aproveitasse aqueles dias para desintoxicar, e talvez até conseguisse parar de
vez. Diabos! Eu não estava nem um pouco a fim de abandonar o meu vício. Até
pensei em ameaçar prendê-la se não me trouxesse um bom maço de Mallboro, mas
acabei desistindo da idéia.
À noite o
terceiro andar do hospital estava mergulhado na escuridão e em um silêncio que
só era quebrado pelo burburinho baixo oriundo do primeiro andar, onde
funcionava o pronto socorro.
Para
compensar minha insônia, eu assistia um desenho animado idiota no volume mínimo
da televisão, enquanto a garotinha com câncer dormia tranqüila na cama ao lado
da minha. Me perguntei onde diabos estavam os pais da minha companheira de
quarto, pois não os vira uma única vez desde que chegara ali.
Tentei apagar
aquilo da mente. Talvez conseguisse saciar minha curiosidade com uma boa
conversa pela manhã. Voltei minha atenção para o desenho animado, onde um
macaquinho com cara de terrorista acendia uma banana de dinamite, quando ouvi
um ruído metálico vindo do corredor. Era algo constante, que se repetia ao
intervalo de cinco segundos ou menos, como uma engrenagem mal lubrificada
trabalhando.
Aquele “nhec”
começou como um sussurro distante e foi tornando-se mais alto à medida que se
aproximava. Repetiu-se bem perto quando a luz automática do corredor se acendeu.
Notei uma sombra passar, devagar e despreocupada, cobrindo brevemente o pouco
de claridade que penetrava pela fresta abaixo da porta. O ruído foi
afastando-se preguiçosamente, e a luz do corredor tornou a apagar.
Sentei-me na
cama e experimentei um pouco de tontura. Calcei um par de pantufas, deslizei
até a porta e a abri devagar. Parei no umbral e a luz ganhou vida outra vez. À
minha esquerda não via-se nada além do completo negrume. À direita, ao final de
um intervalo escuro que calculei ter quinze metros, o corredor fazia uma curva,
onde a última lâmpada no meu campo visual se apagava.
Segui o
andarilho noturno a passos lentos. As lâmpadas fluorescentes iam acendendo-se à
minha frente e apagando-se às minhas costas. O corredor era largo; as paredes
cobertas por azulejos verdes recendendo um cheiro desagradável de desinfetante.
Comecei a ouvir o ruído metálico novamente e notei um pouco de claridade opaca
vinda da curva para onde me dirigia.
Segui
avançando. Um vidro quebrou em algum canto. O desconhecido ruído metálico deu
lugar a um farfalhar que me lembrou um gato assaltando uma lata de lixo na
calada da noite.
Venci a curva
e vi que aquele corredor era mais curto. Do ponto onde eu estava ele parecia
desembocar em um lugar amplo logo à frente, onde a luz mantinha-se acesa. Uma
placa com uma seta indicando a área da radiologia pendia do teto por finas
correntes. Segui por aquele caminho e fui parar num saguão completamente
silencioso. Um grande balcão circular com dois monitores desligados tinha
destaque no centro. Num canto, próximo a um conjunto de cadeiras de estofado
escuro, havia uma máquina que dispensava guloseimas em troca de moedas — tinha
o vidro quebrado, alguns biscoitos e salgadinhos espalhados pelo piso verde —
que explicava os últimos ruídos que eu ouvira.
Decidi
explorar melhor o lugar, com o objetivo de descobrir o pão duro que não queria
gastar algumas moedas. Mal iniciei minha busca, escutei passos apressados e
risadas vindas do corredor maior, de onde eu viera inicialmente. Corri para lá
e pude notar o jogo de luzes acendendo e apagando, acendendo e apagando: alguém
corria. Quanto cheguei ao corredor, a última luz se extinguiu num ponto um
pouco além do meu quarto e uma porta bateu.
Investi
decidido naquela direção. Chegando próximo à porta que batera comecei a escutar
barulhos lá dentro, como que estivessem revirando algo. Minha mão fez o gesto
automático de buscar a arma, mas não a encontrou onde deveria estar. Era tudo
ou nada. Escancarei a porta e... Ninguém! Um pequeno depósito de produtos de
limpeza em perfeita ordem.
Sem entender
mais nada, um pouco atordoado pela tontura que agora me consumia, voltei ao meu
quarto. A televisão continuava ligada no canal de desenhos, mas a garotinha não
estava mais lá; a cama ao lado da minha tinha os lençóis sobriamente estendidos,
como se nunca usados. Voltei-me imediatamente em direção à porta com o intuito
de buscar alguém acordado que me explicasse o que estava acontecendo, mas a
tontura me pegou de vez e desabei antes de dar o primeiro passo.
——————//——————
Despertei não
sei quanto tempo depois. Ergui-me do chão devagar, temeroso, mas a dor de
cabeça e a tontura haviam cessado. O quarto era o mesmo, mas havia mudado:
estava completamente vazio; as paredes escuras, sujas, como no interior de uma casa
há muito tempo abandonada. Tentei pôr os sentidos em ordem. O que estava
acontecendo comigo? Em resposta veio aquele som metálico, enferrujado, vindo do
lado de fora, penetrando através da porta marrom-escura em estado deplorável.
Pus a mão na
maçaneta e a porta desfragmentou-se em poeira. O corredor era o mesmo que eu vira da
última vez, mas, como o quarto, também estava diferente. O azulejo, outrora
verde e limpo, tingia-se aqui e ali com manchas negras. Todas as lâmpadas
quebradas, algumas pendendo do teto por um resto de fio, balançando de um lado
para outro. Alguns raios de sol invadiam o lugar pelas janelas no alto e
deixavam à mostra partículas de poeira dançando no ar. O piso estava coberto
com um manto prateado que à primeira vista parecia neve, mas com uma análise
melhor notei serem cinzas: eu estava num lugar que fora vitima de um grande
incêndio.
O ruído metálico
continuava. No chão havia pequenas pegadas entre duas linhas ininterruptas que
seguiam corredor adiante como se fossem os trilhos de um trem. Corri naquela
direção e o ruído aumentou. Fiz a curva para a direita quando o corredor terminou
e, finalmente, descobri de onde provinha aquele som: a menina de cabelos
raspados empurrava vagarosamente uma cadeira de rodas em direção ao nada.
— Ei, menina!
— gritei. — Pare aí!
Ela parou.
Permaneceu imóvel enquanto eu avançava pela suas costas, como que tivesse
levado um choque. Após alguns passos dei a volta por ela e deparei-me com algo
que eu nunca esperava ver: minha falecida esposa era quem estava sentada na
cadeira de rodas. Tinha os olhos avermelhados, cercados por olheiras roxas. Os
cabelos escuros com fios grisalhos cobrindo parte da testa pálida decorada por
algumas novas rugas. Exatamente a mesma expressão emanando fraqueza que possuía
em seus últimos dias de vida.
Caí de
joelhos. Tentei dizer qualquer coisa, mas minha voz morreu na garganta.
— Está tudo
bem — disse sorridente a garotinha.
— Fa... fale
comigo — pedi à minha mulher, ignorando a menina.
— Ela não
pode. Disse que ainda não é o momento.
Fiz uma cara
de quem não estava entendo nada e a criança entendeu.
— Venha
comigo.
A segui. Ela
empurrando a cadeira de rodas com minha mulher inerte sobre ela, sem piscar ou
mudar de expressão. Descemos ao segundo andar do hospital, onde parecia estar
tudo na mais perfeita ordem, com médicos e pacientes para todos os lados.
Ninguém parecia nos notar, mas quando alguma pessoa passava por onde nós
andávamos, desviava seu trajeto, evitando esbarrar em nós como se nos
pressentisse. A cadeira de rodas com uma engrenagem rangendo constantemente.
— Ali, veja —
apontou a menina.
Eu vi. Em um
quarto particular, ligado a vários aparelhos, meu corpo jazia em estado de
coma.
— É hora de
voltar — ela disse, e eu desmaiei.
———————
// ———————
Despertei sem dor alguma, apenas
sentindo a boca seca. Olhei para o lado e vi Silvério — um negro alto com um
sorriso largo sublinhando o volumoso bigode —, meu velho amigo de infância.
— Até que enfim acordou,
parceiro.
— Por favor, me diga que tem um
cigarro.
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